Não
consigo apagar aquela imagem abominável da minha memória. Por
que parei para ver aquilo? Por que dei ouvidos praqueles alunos
quando disseram que queriam me mostrar um vídeo? Devia saber que
daquelas figuras ali coisa boa não viria. Mas é aquela maldita
curiosidade que não conseguimos evitar.
Atualmente,
o esquartejamento de pessoas e a posterior distribuição dos seus
pedaços pela cidade virou moda dentro do contexto da guerra do
tráfico na minha cidade, coisa que eu só ouvia falar de traficantes
mexicanos e colombianos. Mas estamos na era da globalização, não é
mesmo? E porque nossos traficantes não estariam conectados com esses
novos tempos? Não basta praticar o horror e manter ele em segredo,
tem que gravá-lo e espalhá-lo pela internet, para o deleite de
todos. Quase todos amamos o que é macabro ou sórdido, damos
audiência sem pensar para ele, é algo instintivo. Por que os alunos
também não fariam o mesmo?
Mas
o que me traumatizou não foi o vídeo em si. A imagem de um pobre
infeliz desconhecido sendo desmembrado como uma galinha é algo
aterrador, mas hoje em dia alguém ainda se impressiona com isso? Em
plena era da informação, de “Brasil Urgente” e “Cidade
Alerta”, do Estado Islâmico, da deep web?
Não, infelizmente não foi isso que me horrorizou.
É
que eu reparei demais naquele corpo, que já era, na verdade, uma
carcaça. Magrelo e jovem, exatamente como o dos meus alunos, que se
amontoavam sobre aquele celular para acompanhar aquela ação. As
mesmas caraterísticas, o mesmo moletom. Imaginava o rosto deles
naquela carcaça. A cabeça de um deles sendo extirpada do tronco,
isso me perturbou. Reparava nas mãos anônimas que apareciam no
vídeo, segurando um facão que ia descendo sobre o pescoço daquela
criatura infeliz, notei que não espirrava sangue, o qual já devia
ter se esvaído antes por algum meio. Eram mãos jovens e negras,
exatamente como as dos meus alunos, isso me perturbou mais. Em poucos
segundos pensei em tudo isso, pensei também que aquilo não estava
acontecendo longe da minha cidade, na distante Síria ou no Iraque.
Reparei que o corpo era destroçado sobre uma calçada, um pouco de
concreto, um pouco de laje de arenito rosa, como muitas sobre as quais eu
mesmo ando. Em segundo plano, parecia ter um murinho, com reboco pela
metade, como muitos perto da minha casa ou perto da minha escola.
Isso me perturbou mais ainda. Percebi que aquele horror era tão
próximo de mim e uma ânsia de vômito me subiu pela garganta, foi
quando um dos guris que estavam ali, o Wendel (vou falar dele em
outra oportunidade), notou a expressão aterrorizada da minha cara.
Não consigo esquecer a maneira como aquele garoto começou a
gargalhar ao se dar conta do meu pavor. Isso divertiu muito ele. Era
uma risada igual a do Coringa, personagem que muitos deles carregam
estampado em camisetas, moletons e tatuagens.
Aquilo
foi a gota d'água para mim, me dei conta do que estava fazendo,
permitindo que aquela barbárie fosse assistida na minha sala de
aula. Aos gritos fiz eles desligarem e guardarem aquele celular,
depois xinguei eles por uns dez minutos. E se fosse um parente deles?
O que aprendem assistindo àquela coisa nojenta? Enfim, argumentos
totalmente inúteis, respondidos com absoluto desdém. Até que
fiquei exausto. Num misto de desesperança e nojo. E comecei a passar
uma tarefa no quadro.
Decidi
que jamais permitiria aquilo de novo na minha aula. Na minha pequena
ditadura, o ser humano seria respeitado. Ali, as regiões e biomas
brasileiros seriam mais interessantes do que a morbidez da vida real.
Ali, a leitura de texto e os exercícios teriam mais apelo do que a
tecnologia. Terei sucesso? Acho que a pergunta é outra: Alguém se
importa com isso?