quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

BRAW


As pessoas que mais te fazem mal, são as que mais te ensinam. Parece frase de autoajuda, mas, para mim, é uma dura verdade. Me lembro de quando dei aula pra turma do Braw, menino de 14 anos, no sétimo ano do ensino fundamental de uma escola pública municipal de um dos bairros com os piores indicadores sociais de uma grande cidade brasileira. Não dá pra esquecer aquele olhar, olhos semiabertos, queixo erguido, te analisando... tu te sentia falando com o chefe da galeria do presídio.
Ninguém na faculdade me preparou pra isso, estudei cinco anos e meio (era para ser quatro) e ninguém me avisou que eu entraria em uma sala de aula e teria que lidar com aquela figura. No começo, ele parecia bem legal. Sempre estendia a mão para me cumprimentar: “Qual vai sê sôr? Vamo queimá uma tora?” Cheguei a pensar que seria uma convivência tranquila, os alunos sempre me convidaram, em tom de brincadeira, para fumar maconha. Na verdade, nunca soube se era brincadeira, porque nunca aceitei os convites. Até que um dia, nossa relação se transformou drasticamente. Foi quando, cansado de pedir para que desligasse a “música” do celular, fiz menção de agarrar o aparelho dele, que estava em cima da classe. A coisa não terminou nada bem.
  – Qual foi, sôr? – Disse Braw, em tom ameaçador, com os braços abertos, como que me desafiando. – Sabe com quem tu tá falando? – Ele continuou.
Os outros alunos paralisaram e observavam a cena, como que esperando os próximos capítulos. Queriam ver qual seria a minha reação. Minha vontade na hora era de agarrar o pescoço dele e jogá-lo pela janela. Não lembrava de nenhum autor que tivesse escrito sobre como o professor deve se comportar quando um aluno o coloca abaixo do cú do cachorro. Lógico, a gente respira fundo, tenta pensar nos milhões de motivos que ele possa ter tido para se comportar daquele jeito. Gostaria de saber se ele blefava, ou se era, de fato, algum tipo de apadrinhado do chefe da boca ou o que quer que fosse de perigoso. Levei aquela discussão para mais longe do que queria e, a partir daquele dia, tudo mudou entre nós, e ir para escola foi um tormento, por um certo tempo. 
A principal diversão de Braw e seus amigos era me colocar apelidos, andar pela sala com o celular a todo volume, me encarar, brigar com colegas (principalmente meninas) e brincar de me apontar o dedo e me disparar com uma pistola imaginária. E isso acontecia na sala de aula, no pátio da escola, no refeitório, onde quer que fosse. Existe bullying de aluno contra professor? Bom, aquilo era um exemplo.
Dia de aula com a turma do Braw era um dia difícil de sair da cama. Estava ciente da traumatizante história familiar dele, havia conversado com a direção da escola e com meus colegas mais antigos. Sabia que ele tinha sido uma criança que não conheceu o mínimo de afeto. Conversar com sua mãe era uma ação totalmente infrutífera, e não poderia ser diferente. Provavelmente era por causa dela que o menino era daquele jeito. As tantas vezes que nos reunimos, eu com ele ou eu, ele e a direção, era sempre a mesma coisa. Ele não respondia nada, apenas mantinha aquele olhar firme e ameaçador, parecia se achar em uma situação de negociação, em um motim de alguma penitenciária, ou em um interrogatório policial. Fazia o papel de durão. Já assistiu ao filme “Salve Geral”? Ele era aquele personagem, o “Pedrão”.
A situação seguia, cada vez pior, transferir ele de escola não era uma coisa simples. Um dia, durante uma aula, ele me atrapalhava de alguma maneira, que agora não sei dizer como. Ao chamar a atenção dele, agarrou uma classe com as duas mãos e a levantou sobre a própria cabeça, me ameaçando.
– Qual vai ser, sôr? Qual vai sê?
Quis tanto que o Braw me batesse com aquela classe, assim eu poderia fazer um boletim de ocorrência na delegacia e isso facilitaria a transferência dele para outra escola, me livrando desse pesadelo.
Ele não me bateu. Mesmo assim, fiz o registro, no caso, como ameaça de agressão. Já que a agressão mesmo não tinha ocorrido.

Funcionou, ele foi transferido. Claro, isso não acabou com todos os meus problemas, ele tinha muitos amigos, mas isso é outra história. Hoje, me sinto preparado para dar aulas até no inferno, se for necessário. Graças a um menino sem mãe e sem carinho. Não sei o que o Braw faz da vida atualmente. Espero que um dia encontre um caminho para ele, um em que ele não prejudique a ninguém. Eu, infelizmente, não pude ajuda-lo.

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