quarta-feira, 29 de março de 2017

NEVER GIVE UP!

Já falei sobre o Wendel em outro post (clique aqui), mas agora quero me deter um pouco mais nele, nunca vi outro igual. Sofria de um grave problema de saúde que atrofiou seu crescimento, de modo que ele já tinha 16 anos quando o conheci, mas sua aparência era de 11 anos de idade. Baixinho, corpo franzino, parecia um boneco de marionete. Tudo nele inspirava fragilidade. Apesar disso os demais o tratavam com reverência, ainda não estou bem certo do motivo disso.
Se notava nos antebraços e canelas algumas tatuagens, daquelas verdes, bem toscas. Tinha as clássicas que todos os meninos de vila fazem, um diamante, o nome da mãe e um palhaço. Havia outras ainda, mas não lembro. Esses são alguns dos elementos que diferenciam os garotos. Uns fazem essas tatuagens por “zoeira”, já outros dominam esses códigos, e isso os aproxima ainda mais. Wendel, pequenino, se destacava em meio aos outros grandões. Eu notava, que ele dominava uma conversação entre eles, os demais o escutavam, riam de suas piadas sujas... o respeitavam.
Na sala de aula era um problema. Ele também tinha uma dificuldade tremenda para ler e escrever. Era tão difícil que ele nem tentava mais, o caderno permanecia na mochila, o tempo todo da aula. Mas o celular, carregado de músicas de funk e imagens de cadáveres e execuções, estava sempre à mão. Nunca soube o que fazer para que o conteúdo de geografia o interessasse, mas uma vez ele me deu uma luz.
Durante uma aula, ele e o Maurilio (já falei dele, clique aqui) conversavam e riam no fundo da sala. Decidi pedir para que o Wendel contasse alguma história engraçada para a turma, todos queriam rir também. Então, ele resolveu criar alguma coisa de improviso:
– Sabe professor... uma vez, o prefeito dos Estados Unidos me chamou para uma missão espacial... (eu já comecei a rir) Só que eu não fui, porque não tinha roupa de astronauta do meu tamanho!
Todos riram, e ele contou outras histórias, entre elas a que o pai dele era veterano de guerra, defendera Marte na “Star Wars”. Eram coisas sem sentido, que faziam todos rir por sua maneira de falar.
Então, depois desse dia, achei que tinha captado a mensagem. “Vou falar de astronomia com o Wendel”. Trouxe um vídeo sobre colonização em Marte. Ele e o Maurilio gostaram, mas o resto da turma, não muito. Então tentei trazer atividades, livros, folhinhas, etc. para trabalhar só com os dois. Mas era difícil, eles não eram disciplinados para trabalharem sozinhos, quando deixava eles, para atender outros alunos, logo se distraiam com outras coisas. Era bem difícil.
No fim do ano, conheci a mãe do Wendel, e eu julgava que ele nem tivesse uma. Ela recebeu a avaliação dele, havia sido aprovado em condições especiais, e ouviu o que os professores tinham a falar sobre ele. Doeu bastante ver a desesperança no rosto dela, que se justificava falando que trabalhava o dia todo e não conseguia educar nem o Wendel, nem os irmãos dele. É muito ruim não poder dizer alguma coisa reconfortante para uma pessoa desolada e eu, de fato, não tinha nada de bom pra falar sobre o Wendel, fora que ele contava histórias engraçadas.
No fim, depois de tanto pensar em algo positivo para dizer, vi que ela usava uma blusinha com uma frase em inglês: “Never give up!” Lhe disse o que significava, ela abaixou o rosto e começou a rolar lágrimas de seus olhos.
Hoje eu não sei como está essa família. Espero que nunca desistam de lutar.



quarta-feira, 22 de março de 2017

A GREVE É UMA COISA PESSOAL DE CADA UM

“A greve é uma coisa pessoal de cada um”!
Já escutei essa pérola em uma dessas salas de professores da vida... Como uma categoria de nível intelectual tão alto e que tem tantos direitos atacados, é capaz de produzir pensamentos desse calibre?
Esqueça os discursos sindicais, do tipo: “Nossa categoria é unida!”, “Fizemos uma greve vitoriosa!” Isso não passa de blefe. Há anos não vejo uma vitória convincente de uma luta de professores, há anos não vejo união nessa categoria. Falemos francamente, não procuremos mentir para nós mesmos.
Isso é uma coisa meio paradoxal, pois nas escolas sempre há algum projeto que traz como tema a “solidariedade”, a “união”, o “protagonismo”, a “cooperação” ... Sempre se discursa para os alunos sobre a importância de se lutar por um mundo melhor, de se exercer a cidadania, etc. Porém, quando os próprios professores são chamados a praticar todas essas ideias, coisas mais importantes aparecem: o fim de semana na praia, o jantar no restaurante, a viagem marcada, as compras no supermercado... tantas coisas... Tudo que dissemos se transformam em palavras vazias.
Por que isso é assim? Difícil dizer. Apesar de sermos a categoria de nível superior mais mal paga do Brasil, ainda pensamos que somos de uma classe à qual não pertencemos, e tampouco nos querem nela. Colocamos nossos filhos em escolas particulares, pois não queremos que sejam como nossos alunos. Trabalhamos, às vezes, sessenta horas por semana, para podermos manter uma empregada arrumando nossa casa, pagar a taxa do condomínio fechado, para pagar a parcela do carro novo, a mensalidade TV a cabo, enfim... Temos pavor dos alunos e suas famílias, que vivem em terrenos “invadidos”, que tem ligação direta de luz e assinam “gatonet”. Não queremos ser como eles. Somos de mundo diferentes. Assim, talvez, acreditem alguns.


Quem sabe, quando admitirmos para nós mesmos que temos muito mais em comum com as pessoas que estão nas nossas salas de aula todos os dias, do que com as que estão no comercial do Zaffari (uma rede de supermercados de Porto Alegre), comecemos a agir de forma diferente.

terça-feira, 14 de março de 2017

REBELDES DO SÉCULO XXI

Esqueça os cabelos compridos e as camisetas do Che Guevara. Temos novos rebeldes nas salas de aulas. Eles são tão críticos quanto os da geração anterior, dão suas opiniões em sala de aula, criticam o conteúdo do livro didático e gostam de falar sobre política. Legal, não é mesmo? Porém, eles possuem novas referências (ou seriam velhas?).
Tenho alunos assim, são admiradores de Bolsonaro. Um deles chegou a aparecer na escola vestindo camiseta com a estampa desse senhor. Acham, os tolinhos, que a Dilma era comunista e que o Brasil estava prestes a se tornar um país comunista. “O comunismo não deu certo em lugar nenhum, sôr”! – me dizia um deles. “Nem em Cuba, nem na China, nem na Venezuela”. Pois é, para eles, a Venezuela é um país comunista. Festejaram quando Donald Trump venceu as eleições nos EUA. Achavam que a Hilary Clinton era de esquerda, e a esquerda representa o mal, na opinião deles. PT, esquerda, bandidos, terroristas, Venezuela, Cuba, MST, PCC, Lula, Dilma, Maria do Rosário... tudo isso faz parte de um espectro ameaçador, que é o comunismo.
Entenderam, lá das fontes que eles consultam, que o comunismo é um regime autoritário (não estão tão errados, se pensarmos no bloco soviético) e que tem o objetivo de empobrecer todo mundo. Numa conversa, um me disse, certa vez: “Esse teu esquerdismo, sôr, só vai fazer com que os ricos fiquem pobres e os pobres continuem pobres”. Sempre me perguntava, como garotos que moram em um dos mais pobres bairros de Porto Alegre podem se preocupar com a pobreza dos ricos. Me diziam: “Não pode, sôr, se alguém é rico é porque trabalhou”!
E eu, diante disso, não vou me posicionar? Pelo contrário, diante de pensamentos tão bem cristalizados, eu tentava ao máximo defender o que penso. O que devo dizer? Que com trabalho duro, você pode “vencer”? Conhece mentira pior que essa? É certo que o bloco soviético não me inspira confiança para defendê-lo, muito menos os anos de PT no governo brasileiro, recheado de ataques ao povo e ao meio ambiente. Diante desse cenário, esses jovens não canalizarão seu sentimento de rebeldia, tão típico dessa idade, para os ícones da esquerda, não se identificarão com eles.
Pois é, a esquerda faz toda essa sujeira e eu, na sala de aula, tenho que tentar limpar um pouco. Para que os rebeldes do século XXI não tenham Bolsonaro como referência.



quarta-feira, 8 de março de 2017

O "CARA DA SMED"

 Imagina você professor, professora, desenvolvendo sua aula e um aluno perambulando pela sala,  ouvindo música alta no celular, rindo, mexendo com os colegas. Ele tem a mochila ainda nas costas, porque abri-la para tirar o caderno e realizar alguma tarefa, está fora de questão para ele. Pedir para que ele se sente tem o mesmo efeito que falar com uma parede. Você procura atender os alunos interessados, distribui folhas com atividades, passa tarefa para ser feita no caderno, etc. Aquele cara zanzando pela sala não participa de nada que você propõe. Você observa os seus alunos dia a dia, o  empenho deles com a própria aprendizagem, a sua participação, etc. e, então, no final do ano, você define que ele rapazinho da mochila nas costas não terá a mesma avaliação que os demais, ele não tem condições de seguir adiante. Outros colegas professores chegaram a essa mesma conclusão: o alegre moço da mochila precisa repetir aquele ano, infelizmente, quem sabe ele se concentra mais no próxmo ano. Decisão tomada, batemos o martelo. Seguimos adiante... Seguimos? Não. É que existe uma outra instância, maior do que você que acompanhou o ano inteiro aquele aluno.
Essa instância é o “cara da SMED” (Secretaria Municipal de Educação). Ele vai se sentar com a supervisora da escola e vai perguntar sobre todos os alunos problemáticos. E ele vai tomar conhecimento da situação daquele mocinho e vai dizer: "Quero ver os trabalhos desse aluno". A supervisora vai responder: "é... bem... ele não fez trabalho algum, os professores não tem nada dele". O cara pergunta: "E esse aluno tem condições de aprender"? A supervisora conhece o aluno, sabe que ele tem condições intelectuais, apenas decidiu que não faria nada na sala de aula, então ela responde:"sim, ele tem". E aí, por “falta de provas” e pelo fato do aluno, aparentemente, não ter maiores problemas mentais, tipo confundir um elefante com uma borboleta, esse cara vai decidir, por cima da escola inteira, que esse rapazinho vai passar de ano, sim senhor!
E, quando começar o próximo ano letivo, estará lá ele, o carinha da mochila nas costas, andando pela sala. Na mesma sala que os seus coleguinhas que fizeram todos os trabalhos e demonstraram empenho durante o ano anterior. Esses outros alunos olharão para ele e depois para você. E a indagação no rosto deles será do tipo: “que merda ele tá fazendo aqui”?

E você fará para si mesmo, essa mesma pergunta. “Que merda EU tô fazendo aqui”?

quarta-feira, 1 de março de 2017

PANELAS IGNORADAS

Era uma tarde chuvosa, daquelas que você tem vontade de fazer qualquer coisa, menos sair de casa. Mas, apesar de tudo, estava na sala de aula com os alunos. Não lembro que assunto era, só lembro quando um som de paneladas e gritos chamaram nossa atenção e fomos todos para a janela. Não, não. Não eram as panelas do Moinhos de Vento, se você quer saber, bairro nobre de Porto Alegre, bastião da “luta” contra a corrupção no Brasil, onde madames e mauricinhos brincavam de “Anos Rebeldes”. Quem produzia o som que nos chamou a atenção, era um grupo pequeno de moradores de uma área ocupada, perto da escola. Lugar de moradia de muitos alunos.

Perguntei se os alunos sabiam o que estava acontecendo.
– Vão tirar a “invasão” de lá, sôr! Vão expulsá todo mundo! – Me respondeu um aluno.
– Mora algum colega de vocês? – foi minha pergunta seguinte.
– Ih, mora “força” de nêgo daqui do colégio, sôr! Dessa turma aqui, mora o Binho!
Reparei que o Binho não tinha aparecido na aula naquele dia, quem sabe estivesse lá, junto com a família, lutando para que sua casa não fosse demolida. Ficamos observando a movimentação, o grupo subia por uma rua e desaparecia entre as casas. Na certa, tentavam chegar nas avenidas principais do bairro, para tentar fazer seu problema ser conhecido por todos. Os alunos me relataram que o despejo estava para acontecer na próxima semana.
E assim, foi. No dia marcado, caminhões de mudança, oficiais de justiça, helicóptero, ambulâncias e forte aparato policial tomaram o bairro. Eram dezenas de policiais, os mesmos que nunca estavam lá para impedir um tiroteio ou um assassinato. Não tive coragem de ir até lá para encarar a tristeza na cara das pessoas que perdiam suas casas (se é possível chamar assim os barracos em que viviam). Alguns colegas foram lá para ver o que podiam fazer, encontrar algum aluno, dar alguma palavra de consolo... Há muito pouco a se fazer nessas horas. Muitas famílias não tinham para onde ir, não sabiam o que fazer. Algumas iam para casa de parentes, no bairro mesmo ou em outro.
Como resultado, aqueles alunos que ali viviam e que já não tinham muita organização para a vida escolar, um lugar para guardar suas coisas ou estudar, ficaram numa situação pior ainda, mais relapsos e menos frequentes nas aulas. Este é o drama habitacional brasileiro, que governo algum conseguiu eliminar e que afeta diretamente a educação daquelas crianças que não possuem uma moradia fixa e adequada.

Naquele dia, eu decidi que o Binho e os demais alunos que ali viviam, não seriam cobrados como os demais na minha disciplina. Não avisei isso a eles. O que você faria? Eu não vou reter um aluno na minha disciplina se ele nem ao menos vai ter uma casa, com um quarto, com uma escrivaninha, com um computador, enfim... para se recuperar comigo. Essa conta não é só minha, é de todo mundo.