A comunidade em que a minha antiga escola se encontrava, apresentava um grave problema de moradia. Todos sabem o que é isso. Pessoas sem condições financeiras constroem suas casas em áreas "livres" e vão vivendo, até que as expulsam, então elas procuram outro local para construir suas casas, se é que pode se chamar assim as precárias habitações que são construídas. Pois, outro dia, durante uma conversa na sala dos professores (e professoras, aliás, elas são sempre a maioria), comentávamos sobre a ausência de um aluno, o Rui, fazia muito tempo que ele não aparecia. Então, uma colega, que era a professora dele na oficina de robótica, da qual ele gostava muito, comentou ter pedido para um aluno que fosse, se pudesse, até a casa do Rui, para ver o que estava acontecendo com ele, porque faltava tanto.
O menino fez o que ela pediu, mas quando voltou com a resposta, foi trágico e cômico. Ele disse: "Professora, fui até a casa do Rui... mas a casa dele não tava mais lá"...
quarta-feira, 10 de maio de 2017
quinta-feira, 27 de abril de 2017
NOTA 10! E DAÍ?
O fim de ano vem chegando e, na escola, sempre vem aquele
problema. Já não há mais o que fazer, muitos alunos já têm uma ideia segura dos
seus resultados, uns sabem que passaram, outros sabem que não, as principais
avaliações já foram feitas... não há muita motivação para ira a escola, se vai
apenas para “cumprir tabela”, realmente.
Num desses dias, como havia poucos alunos, numa turma de
sétimo ano em que eu estava, decidi aproveitar o momento para fazer algo
diferente, então propus uma conversa. Falaríamos sobre o que acharam do ano, o
que pensam fazer no futuro, esse tipo de coisa... uns toparam a ideia,
participavam bem, outros, só perguntavam se podiam ir para casa. E, assim,
levamos até o final.
Lá pelas tantas, questionei sobre o que achavam das minhas
aulas, se aprenderam algo importante. Um deles, disse que achava Geografia
importante para saber onde ficam os lugares, os países, etc. Então, perguntei a
ele, de que servia saber onde ficam os países?
– Ah, sôr, se a gente
quiser ir viajar, ir viver em outro país...
Nesse momento, pensei sobre quão inútil era eu e aquele meu
trabalho... pois, a conclusão que o menino havia chegado era de que ele só
aproveitaria um ano inteiro de aula de Geografia, se ele fosse viajar. Quantos alunos meus viajarão para outro país? Que aula mas inútil... Anotei
aquele problema para tentar me reinventar no futuro, precisava fazer aulas mais
úteis, meu papel não é o de um agente de turismo. Porém, aquele questionamento
havia mexido com outra aluna. E então, quando ela falou, o meu sentimento de
que meu trabalho não servia para nada, apenas se confirmou. As palavras dela
foram sinceras, e duras, me senti rebaixado ao nível de uma formiga.
A menina falou, de uma maneira natural, sobre como o que ela
aprendeu até aquele momento na escola, não havia lhe sido útil de forma alguma.
Segundo ela, em nenhuma entrevista de emprego perguntam sobre nada do que se
ensina numa sala de aula. Entrevistador nenhum quer saber dessas coisas que se
aprende em Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e, principalmente, em
Geografia. Procurei questioná-la, mas não tentei defender o contrário. Pensei
que, se até aquela altura do campeonato, a escola ainda não havia convencido
aquela menina da sua importância, então não tinha muito o que eu fazer naquele
momento.
Mas, como que para colocar aquela cereja no bolo da discussão,
outra aluna comenta, com muita tranquilidade, sobre como seu irmão mais velho
abandonou a escola para traficar drogas. E, depois que já havia adquirido
algumas propriedades, imóveis, etc. decidiu que, então, já era hora de
largar essa atividade, um tanto perigosa, e viver dos aluguéis de suas casas.
Alguns colegas se impressionaram, outros criticaram... Mas, no fim, o irmão
dela era apenas um homem de negócios, não? Talvez as aulas de Matemática tenham o ajudado, quem sabe, mas Geografia, acho que não.
O que aprendemos com tudo isso? Com essas opiniões dos alunos? Acho que muito, mas só se
estivermos dispostos a rever nossos papeis.
quarta-feira, 19 de abril de 2017
MISTÉRIOS DA SALA DE AULA
Existem algumas coisas engraçadas sobre os alunos, essas
coisas possuem uma lógica muito particular, apenas entendida por eles. Já fui
um aluno, já estive sentado no lugar em que eles estão agora. Mas confesso, não
sei se pelo fato de ser há muito tempo, não entender mais muitas dessas coisas,
se é que, algum dia, entendi.
Por exemplo, a questão de jogar bolinha de papel no lixo. O
guri passa a aula inteira em pé, andando pela sala, incomoda um, puxa o cabelo
daquela, toma o celular de outro. Faz uma verdadeira excursão por todos os
pontos da sala de aula. Mas, se for para jogar papel no lixo, ele não irá
caminhar até lixeira, ele sempre se senta na classe dele, que é, geralmente,
bem longe, e tenta acertar a lata de lixo. De onde vem essa preguiça repentina?
Gostaria de saber.
Outro momento muito curioso é quando você tenta expor um
assunto verbalmente, ou seja, uma aula expositiva. Você, então, quer explicar
algo antes de passar a tarefa, para ajuda-los a realiza-la, e isso,
infelizmente, se torna algo impossível. Os alunos conversam entre si, em voz
alta, ouvem música no celular, se levantam. Você acaba brigando com todos, dá
um sermão sobre escutar o próximo e etc, etc. E isso não adianta porra nenhuma.
Então, você se cansa, já se desgastou demais tentando falar e se vira para o
quadro para passar a tarefa, sem explicação mesmo, azar. Nesse momento, todos
se calam e começam a copiar. De repente, a sala fica em silêncio. E me
pergunto, por que não dá pra acontecer o contrário, deixarem para conversar
depois da explicação? Outro mistério insolúvel.
Por fim, a última lógica difícil de entender para mim é a daquele
aluno que faz absolutamente tudo o que ele quer na sala de aula, ouve música,
joga videogame, anda pela sala, joga pião, bate figurinhas, etc. não se importa
um ovo com você, tá se lixando se você está na sala ou não. De repente, ele
chega perto de você e diz: “Sôr, dá pra ir no banheiro”? E me pergunto, por que
minha autoridade só serve para deixar ir ao banheiro? Não tenho poder sobre
mais nada na aula, exceto o salvo conduto até o banheiro.
Quem sabe alguém possa me auxiliar a desvendar esses
mistérios, até agora não consegui.
quarta-feira, 5 de abril de 2017
TÊNIS NOVOS
A noite tinha
sido agitada na comunidade, os alunos relataram ouvir o som de tiros,
foram muitos. Me lembro da fala de uma aluna quando chegou na sala de
aula: “É foda, véio! Tu tá saindo de casa pra ir pro colégio, e
tem um corpo morto atirado bem na tua esquina”! Eu nem imagino o
que deve ser isso. Não passei por nada parecido quando cursava o
antigo 1° grau. O máximo que vi foi alguma galinha morta na esquina
da escola, recheada com pipoca. Nunca uma pessoa.
Os alunos lidam
de formas diferentes com essa situação, assim como essa aluna
pareceu impressionada e indignada com esse fato, outros já se
importam bem menos. É o caso do Daniel, onze anos de idade, um metro
e vinte de altura, mas se comportava como um adulto. É estranho de
ver, difícil de explicar, tu tens que ver para entender, quaisquer
palavras que eu use aqui não servirão para descrevê-lo. Mas, não
tem outro jeito, tenho que tentar.
O olhar dele já
não era o de uma criança há muito tempo, sabe, tinha aquela
“maldade”, aquela “esperteza que só tem quem tá cansado de
apanhar”, como diz a música dos Paralamas. E a maneira de falar,
então... sempre ameaçador, agressivo, cheio das gírias... se via
que ele não convivia com crianças da sua idade... A pele sempre
encardida, as roupas sujas, gastas, sempre de um número maior que o
dele. Esse era o Daniel, vivia como um cachorro abandonado...
Ele entrou nessa
história porque no dia em que a comunidade acordou com um corpo
jogado em uma esquina, o Daniel chegou na escola com um par de tênis
novos, muito maiores que os pés dele. Quando uma professora
estranhou aquela situação e perguntou de onde ele havia tirado
aqueles tênis esquisitos, ele respondeu tranquilamente que tinha
sido daquele cadáver.
E assim segue a educação nas comunidades periféricas do Brasil,
entre cadernos e cadáveres, canetas e armas... antes de terminar
aquele ano, o Daniel tentou sair empurrando minha moto pelo portão
da escola, os funcionários que viram o pararam. Até onde ele iria?
Não sei... admito que fiquei um pouquinho feliz quando aquele ano
acabou.
quarta-feira, 29 de março de 2017
NEVER GIVE UP!
Já
falei sobre o Wendel em outro post (clique aqui), mas agora quero me
deter um pouco mais nele, nunca vi outro igual. Sofria de um grave
problema de saúde que atrofiou seu crescimento, de modo que ele já
tinha 16 anos quando o conheci, mas sua aparência era de 11 anos de
idade. Baixinho, corpo franzino, parecia um boneco de marionete. Tudo
nele inspirava fragilidade. Apesar disso os demais o tratavam com
reverência, ainda não estou bem certo do motivo disso.
Se
notava nos antebraços e canelas algumas tatuagens, daquelas verdes,
bem toscas. Tinha as clássicas que todos os meninos de vila fazem,
um diamante, o nome da mãe e um palhaço. Havia outras ainda, mas
não lembro. Esses são alguns dos elementos que diferenciam os
garotos. Uns fazem essas tatuagens por “zoeira”, já outros
dominam esses códigos, e isso os aproxima ainda mais. Wendel,
pequenino, se destacava em meio aos outros grandões. Eu notava, que
ele dominava uma conversação entre eles, os demais o escutavam,
riam de suas piadas sujas... o respeitavam.
Na
sala de aula era um problema. Ele também tinha uma dificuldade tremenda
para ler e escrever. Era tão difícil que ele nem tentava mais, o
caderno permanecia na mochila, o tempo todo da aula. Mas o celular,
carregado de músicas de funk e imagens de cadáveres e execuções,
estava sempre à mão. Nunca soube o que fazer para que o conteúdo
de geografia o interessasse, mas uma vez ele me deu uma luz.
Durante
uma aula, ele e o Maurilio (já falei dele, clique aqui) conversavam
e riam no fundo da sala. Decidi pedir para que o Wendel contasse
alguma história engraçada para a turma, todos queriam rir também.
Então, ele resolveu criar alguma coisa de improviso:
–
Sabe professor... uma vez, o prefeito dos Estados Unidos me chamou
para uma missão espacial... (eu já comecei a rir) Só que eu não
fui, porque não tinha roupa de astronauta do meu tamanho!
Todos
riram, e ele contou outras histórias, entre elas a que o pai dele
era veterano de guerra, defendera Marte na “Star Wars”. Eram
coisas sem sentido, que faziam todos rir por sua maneira de falar.
Então,
depois desse dia, achei que tinha captado a mensagem. “Vou falar de
astronomia com o Wendel”. Trouxe um vídeo sobre colonização em
Marte. Ele e o Maurilio gostaram, mas o resto da turma, não muito.
Então tentei trazer atividades, livros, folhinhas, etc. para
trabalhar só com os dois. Mas era difícil, eles não eram
disciplinados para trabalharem sozinhos, quando deixava eles, para
atender outros alunos, logo se distraiam com outras coisas. Era bem
difícil.
No
fim do ano, conheci a mãe do Wendel, e eu julgava que ele nem
tivesse uma. Ela recebeu a avaliação dele, havia sido aprovado em
condições especiais, e ouviu o que os professores tinham a falar
sobre ele. Doeu bastante ver a desesperança no rosto dela, que se
justificava falando que trabalhava o dia todo e não conseguia educar
nem o Wendel, nem os irmãos dele. É muito ruim não poder dizer
alguma coisa reconfortante para uma pessoa desolada e eu, de fato,
não tinha nada de bom pra falar sobre o Wendel, fora que ele contava
histórias engraçadas.
No
fim, depois de tanto pensar em algo positivo para dizer, vi que ela
usava uma blusinha com uma frase em inglês: “Never give up!” Lhe
disse o que significava, ela abaixou o rosto e começou a rolar
lágrimas de seus olhos.
Hoje
eu não sei como está essa família. Espero que nunca desistam de
lutar.
quarta-feira, 22 de março de 2017
A GREVE É UMA COISA PESSOAL DE CADA UM
“A greve é uma
coisa pessoal de cada um”!
Já escutei essa
pérola em uma dessas salas de professores da vida... Como uma
categoria de nível intelectual tão alto e que tem tantos direitos
atacados, é capaz de produzir pensamentos desse calibre?
Esqueça os
discursos sindicais, do tipo: “Nossa categoria é unida!”,
“Fizemos uma greve vitoriosa!” Isso não passa de blefe. Há anos
não vejo uma vitória convincente de uma luta de professores, há
anos não vejo união nessa categoria. Falemos francamente, não
procuremos mentir para nós mesmos.
Isso é uma coisa
meio paradoxal, pois nas escolas sempre há algum projeto que traz
como tema a “solidariedade”, a “união”, o “protagonismo”,
a “cooperação” ... Sempre se discursa para os alunos sobre a
importância de se lutar por um mundo melhor, de se exercer a
cidadania, etc. Porém, quando os próprios professores são chamados
a praticar todas essas ideias, coisas mais importantes aparecem: o
fim de semana na praia, o jantar no restaurante, a viagem marcada, as
compras no supermercado... tantas coisas... Tudo que dissemos se
transformam em palavras vazias.
Por que isso é assim? Difícil dizer. Apesar de sermos a categoria
de nível superior mais mal paga do Brasil, ainda pensamos que somos
de uma classe à qual não pertencemos, e tampouco nos querem nela.
Colocamos nossos filhos em escolas particulares, pois não queremos
que sejam como nossos alunos. Trabalhamos, às vezes, sessenta horas
por semana, para podermos manter uma empregada arrumando nossa casa,
pagar a taxa do condomínio fechado, para pagar a parcela do carro
novo, a mensalidade TV a cabo, enfim... Temos pavor dos alunos e suas
famílias, que vivem em terrenos “invadidos”, que tem ligação
direta de luz e assinam “gatonet”. Não queremos ser como eles.
Somos de mundo diferentes. Assim, talvez, acreditem alguns.
Quem sabe, quando
admitirmos para nós mesmos que temos muito mais em comum com as
pessoas que estão nas nossas salas de aula todos os dias, do que com
as que estão no comercial do Zaffari (uma rede de supermercados de
Porto Alegre), comecemos a agir de forma diferente.
terça-feira, 14 de março de 2017
REBELDES DO SÉCULO XXI
Esqueça os
cabelos compridos e as camisetas do Che Guevara. Temos novos rebeldes
nas salas de aulas. Eles são tão críticos quanto os da geração
anterior, dão suas opiniões em sala de aula, criticam o conteúdo
do livro didático e gostam de falar sobre política. Legal, não é
mesmo? Porém, eles possuem novas referências (ou seriam velhas?).
Tenho alunos assim, são admiradores de Bolsonaro. Um deles chegou a aparecer na
escola vestindo camiseta com a estampa desse senhor. Acham, os
tolinhos, que a Dilma era comunista e que o Brasil estava prestes a
se tornar um país comunista. “O comunismo não deu certo em lugar
nenhum, sôr”! – me dizia um deles. “Nem em Cuba, nem na China,
nem na Venezuela”. Pois é, para eles, a Venezuela é um país
comunista. Festejaram quando Donald Trump venceu as eleições nos
EUA. Achavam que a Hilary Clinton era de esquerda, e a esquerda
representa o mal, na opinião deles. PT, esquerda, bandidos,
terroristas, Venezuela, Cuba, MST, PCC, Lula, Dilma, Maria do
Rosário... tudo isso faz parte de um espectro ameaçador, que é o
comunismo.
Entenderam, lá das fontes que eles consultam, que o
comunismo é um regime autoritário (não estão tão errados, se
pensarmos no bloco soviético) e que tem o objetivo de empobrecer
todo mundo. Numa conversa, um me disse, certa vez: “Esse teu
esquerdismo, sôr, só vai fazer com que os ricos fiquem pobres e os
pobres continuem pobres”. Sempre me perguntava, como garotos que
moram em um dos mais pobres bairros de Porto Alegre podem se
preocupar com a pobreza dos ricos. Me diziam: “Não pode, sôr, se
alguém é rico é porque trabalhou”!
E eu, diante
disso, não vou me posicionar? Pelo contrário, diante de pensamentos
tão bem cristalizados, eu tentava ao máximo defender o que penso. O
que devo dizer? Que com trabalho duro, você pode “vencer”?
Conhece mentira pior que essa? É certo que o bloco soviético não
me inspira confiança para defendê-lo, muito menos os anos de PT no
governo brasileiro, recheado de ataques ao povo e ao meio ambiente.
Diante desse cenário, esses jovens não canalizarão seu sentimento
de rebeldia, tão típico dessa idade, para os ícones da esquerda,
não se identificarão com eles.
Pois é, a
esquerda faz toda essa sujeira e eu, na sala de aula, tenho que
tentar limpar um pouco. Para que os rebeldes do século XXI não
tenham Bolsonaro como referência.
quarta-feira, 8 de março de 2017
O "CARA DA SMED"
Imagina você professor, professora, desenvolvendo sua aula e um
aluno perambulando pela sala, ouvindo música alta no celular,
rindo, mexendo com os colegas. Ele tem a mochila ainda nas costas,
porque abri-la para tirar o caderno e realizar alguma tarefa, está
fora de questão para ele. Pedir para que ele se sente tem o mesmo
efeito que falar com uma parede. Você procura atender os alunos
interessados, distribui folhas com atividades, passa tarefa para ser
feita no caderno, etc. Aquele cara zanzando pela sala não participa de
nada que você propõe. Você observa os seus alunos dia a dia, o empenho deles com a própria aprendizagem, a sua participação,
etc. e, então, no final do ano, você define que ele rapazinho da
mochila nas costas não terá a mesma avaliação que os demais, ele
não tem condições de seguir adiante. Outros colegas professores chegaram a essa mesma conclusão: o alegre moço da mochila precisa repetir
aquele ano, infelizmente, quem sabe ele se concentra mais no próxmo ano. Decisão tomada, batemos o martelo.
Seguimos adiante... Seguimos? Não. É que existe uma outra instância, maior
do que você que acompanhou o ano inteiro aquele aluno.
Essa instância é
o “cara da SMED” (Secretaria Municipal de Educação). Ele vai se
sentar com a supervisora da escola e vai perguntar sobre todos os
alunos problemáticos. E ele vai tomar conhecimento da situação
daquele mocinho e vai dizer: "Quero ver os trabalhos desse aluno".
A supervisora vai responder: "é... bem... ele não fez trabalho algum, os
professores não tem nada dele". O cara pergunta: "E esse aluno tem condições de aprender"? A supervisora conhece o aluno, sabe que ele tem condições intelectuais, apenas decidiu que não faria nada na sala de aula, então ela responde:"sim, ele tem". E aí, por “falta de provas” e pelo fato do aluno, aparentemente, não ter maiores problemas mentais, tipo confundir um elefante com uma borboleta, esse cara vai decidir, por cima da escola inteira, que
esse rapazinho vai passar de ano, sim senhor!
E, quando começar
o próximo ano letivo, estará lá ele, o carinha da mochila nas
costas, andando pela sala. Na mesma sala que os seus coleguinhas que
fizeram todos os trabalhos e demonstraram empenho durante o ano
anterior. Esses outros alunos olharão para ele e depois para você.
E a indagação no rosto deles será do tipo: “que merda ele tá
fazendo aqui”?
E você fará
para si mesmo, essa mesma pergunta. “Que merda EU tô fazendo
aqui”?
quarta-feira, 1 de março de 2017
PANELAS IGNORADAS
Era uma tarde
chuvosa, daquelas que você tem vontade de fazer qualquer coisa,
menos sair de casa. Mas, apesar de tudo, estava na sala de aula com
os alunos. Não lembro que assunto era, só lembro quando um som de
paneladas e gritos chamaram nossa atenção e fomos todos para a
janela. Não, não. Não eram as panelas do Moinhos de Vento, se você
quer saber, bairro nobre de Porto Alegre, bastião da “luta”
contra a corrupção no Brasil, onde madames e mauricinhos brincavam
de “Anos Rebeldes”. Quem produzia o som que nos chamou a atenção,
era um grupo pequeno de moradores de uma área ocupada, perto da
escola. Lugar de moradia de muitos alunos.
Perguntei se os
alunos sabiam o que estava acontecendo.
– Vão tirar a
“invasão” de lá, sôr! Vão expulsá todo mundo! – Me
respondeu um aluno.
– Mora algum
colega de vocês? – foi minha pergunta seguinte.
– Ih, mora
“força” de nêgo daqui do colégio, sôr! Dessa turma aqui, mora
o Binho!
Reparei que o
Binho não tinha aparecido na aula naquele dia, quem sabe estivesse
lá, junto com a família, lutando para que sua casa não fosse
demolida. Ficamos observando a movimentação, o grupo subia por uma
rua e desaparecia entre as casas. Na certa, tentavam chegar nas
avenidas principais do bairro, para tentar fazer seu problema ser
conhecido por todos. Os alunos me relataram que o despejo estava para
acontecer na próxima semana.
E assim, foi. No
dia marcado, caminhões de mudança, oficiais de justiça,
helicóptero, ambulâncias e forte aparato policial tomaram o bairro.
Eram dezenas de policiais, os mesmos que nunca estavam lá para
impedir um tiroteio ou um assassinato. Não tive coragem de ir até
lá para encarar a tristeza na cara das pessoas que perdiam suas
casas (se é possível chamar assim os barracos em que viviam).
Alguns colegas foram lá para ver o que podiam fazer, encontrar algum
aluno, dar alguma palavra de consolo... Há muito pouco a se fazer
nessas horas. Muitas famílias não tinham para onde ir, não sabiam
o que fazer. Algumas iam para casa de parentes, no bairro mesmo ou em
outro.
Como resultado, aqueles alunos que ali viviam e que já não tinham muita organização para a vida escolar, um lugar para guardar suas
coisas ou estudar, ficaram numa situação pior ainda, mais relapsos
e menos frequentes nas aulas. Este é o drama habitacional
brasileiro, que governo algum conseguiu eliminar e que afeta
diretamente a educação daquelas crianças que não possuem uma
moradia fixa e adequada.
Naquele dia, eu
decidi que o Binho e os demais alunos que ali viviam, não seriam
cobrados como os demais na minha disciplina. Não avisei isso a eles.
O que você faria? Eu não vou reter um aluno na minha disciplina se
ele nem ao menos vai ter uma casa, com um quarto, com uma
escrivaninha, com um computador, enfim... para se recuperar comigo.
Essa conta não é só minha, é de todo mundo.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017
PÓLVORA ESCOLAR
– Olha ali, são
os “contra”! – Disse o garoto Ismael, apoiado na janela do
corredor do pavilhão de aulas, que dava para o fundo da escola.
Há alguns meses
a vila andava sobressaltada com uma guerra de facções pelo controle
dos pontos de tráfico. Eram frequentes as incursões de traficantes
de outras partes da cidade para matar desafetos, intimidar ou,
simplesmente demonstrar força, naquela vila. Naquele dia, a escola
havia recebido um aviso dos traficantes locais, trazido por
moradores, de que as aulas deveriam ser suspensas ao meio-dia, devido
a uma possível invasão na vila, o que poderia levar a um tiroteio
entre facções. A direção da escola, preferiu esperar um pouco
mais para tomar uma decisão. Afinal, suspender um dia de aula assim,
através de um recado boca a boca... não parece ser um procedimento
correto.
Antes do aluno
Ismael lançar seu alerta para o que estava acontecendo do outro lado
da janela, havíamos escutado um som, como de um tiro, porém, nesse
primeiro momento, ninguém deu muita atenção, pois, o tempo
inteiro garotos detonam bombinhas e rojões próximo a escola, de
todas as maneiras possíveis, de modo que ninguém mais se assustava
com qualquer coisa. Mas, quando Ismael falou, todos fomos a janela
ver o que era, eu e mais os outros quatro alunos da oficina de meio
ambiente. Um carro branco estava parado no meio da rua com a porta
aberta, um homem com um pé do lado de fora, sem descer totalmente do
carro, apontava um revólver para o céu. Nesse momento, ele deu mais
um tiro. Parece que o recado boca a boca era sério.
Esse carro branco
arrancou e foi para frente da escola, parou de novo e outro tiro foi
disparado para o alto. Quem estava no pátio, fazendo aula de
educação física, correu desesperadamente para se abrigar, se
esconder, fugir ou sabe-se lá o quê. Eu permaneci no pavilhão de
cima com os alunos, dava pra acompanhar todo o movimento e parecia um
lugar seguro, era melhor ficar por lá e esperar a orientação do
que fazer.
Naquela altura, o
cheiro de pólvora havia tomado a escola. Pude notar a adrenalina que
tomou conta dos garotos. Não estavam assustados. Contavam causos de
seus tios, amigos ou irmãos que fazem parte de facções ou que
estão presos, falavam sobre as armas que já viram na vila, que já
pegaram na mão, etc. Aquilo tudo era como parte do dia a dia. Até
as músicas que eles ouvem contam isso.
O fato é que,
até então, não sabíamos nada de certo, quem eram aquelas pessoas
naquele carro branco, porque fizeram aquilo, não se sabia nada. Os
meninos deduziram que eram os “contra”, ou seja, traficantes
rivais, de fora da vila
De repente, um
carro cinza passa pela rua lateral à escola, em alta velocidade, ia
para a mesma direção que o carro branco anterior havia ido.
– Olha lá,
aqueles são os “guri”! Os “guri” vão pegá eles! Bá, os
“guri” têm até metralhadora!
Os “guri”...
é a maneira carinhosa de se referir aos membros do tráfico local.
Afinal de contas, fazem parte dele, os seus vizinhos, conhecidos, às
vezes amigos e até parentes.
Os garotos já
haviam construído o roteiro de um "filme", que era mais ou menos
assim: Os malignos “contra” chegaram pra intimidar a vila,
atirando para o alto perto da escola. De repente, os destemidos
“guri” surgem para acabar com a petulância desses vilões e vão
ao encontro deles para defender a sua comunidade.
Depois, se soube
que eram membros da facção local mesmo, que fizeram aquilo, de
atirar para o alto, para forçar o fechamento da escola. Você vê,
na verdade, eles estavam preocupados com a segurança dos alunos e
professores, para que não ficassem na linha de tiro, quando a guerra
começasse. Porém, quando estávamos lá em cima no último andar do
pavilhão de aulas, vimos um outro filme, bem mais empolgante.
Na verdade, foi
divertido. Ficamos sentados nas classes, olhando pela janela. Os
meninos estavam na expectativa dos próximos acontecimentos. Qualquer
carro que passava era apontado.
– olha lá,
outro carro cinza! – ali, ali, um carro vermelho! – Lá, um
carro verde! – uma bicicleta! – uma carroça...
Bom, no final das contas, naquele dia saímos mais cedo. Eu nunca
tinha passado por uma situação daquelas e pensei, quantas vezes
isso acontece nas vilas e favelas por esse Brasil? O que podemos
esperar desses meninos e meninas, pra quem a violência é uma
cultura? Como pode a escola agir nesse contexto? Os defensores do
projeto Escola Sem Partido têm alguma proposta quanto a isso?
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017
SÔR, VAI CONTINUAR MEU AMIGO?
O
escritor Umberto Eco, no final dos seus dias, disse que a internet
deu voz aos imbecis. Acredito que isso seja verdade. Além de
imbecilidades, também temos as notícias falsas. Tudo espalhado como
a maior das verdades. Os imbecis produzem e outros, compartilham.
Asneiras como o feminismo ser culpado pelo aumento da quantidade de
gays e lésbicas no mundo, idiotices como os direitos humanos
defenderem bandidos, estupidezes como a política de cotas tirar os
direitos dos que são brancos ou, o mais ridículo, postagens de
apoio às políticas de Donald Trump, feitas por brasileiros, que
nunca conseguirão entrar nos Estados Unidos e desfrutar dos
benefícios deste belo país.
Você
poderia pensar: “Deixa esses imbecis pra lá! Manda eles à
merda e exclui do seu facebook”! Mas, quando o “imbecil” é um
aluno, ou ex-aluno seu? Que você acompanha ou acompanhou em aula,
viu seus progressos, o ajudou pensar, a chegar a suas próprias
conclusões. E, de repente, a conclusão que ele chegou é de que ele
prefere viver sob a censura de uma ditadura do que ter “sua família
morta por um vagabundo”.
A
ditadura de 1964, acabou com os “vagabundos”? Ah, os vagabundos,
esses seres sempre citados quando se quer defender um regime de
exceção, o que seria do discurso de ódio se não fossem eles?
Bolsonaro, Luís Carlos Prates, Oswaldo de Carvalho, Rogério
Mendelski, esses caras devem tanto aos vagabundos!
Normalmente,
caras como eles atacam regimes como o cubano ou o da Coréia do
Norte. Haveria que se perguntar se nesses países, com suas políticas
autoritárias, a “vagabundagem” tem vez. E, dependendo da
resposta, haveria que se perguntar se esses caras estão
interessados, então, em liberdade e democracia ou em punir os
“vagabundos”.
Bom,
o fato é que com frequência me envolvo em discussões de internet
com meus alunos e ex-alunos. Todos, muito cedo, já se consideram de
direita e anticomunistas, seja lá o que isso signifique. Numa
dessas, terminando uma conversa, onde discutimos muito, o menino me
escreve: “Sôr, vamos continuar amigos, né”? Como posso eu
tratá-lo? Como um imbecil? Como um fascista? Claro, que eu disse que
continuaríamos amigos. E o que mais eu diria? Sei que a educação é
um caminho sem fim, basta manter a cabeça aberta e você sempre
aprenderá. Segundo Paulo Freire, você só para de aprender quando
achar que já sabe tudo. Eu acredito nisso.
Sempre
fazer perguntas, e mais perguntas, quando encontrar um discurso de
ódio pela frente. Escolhi fazer meu enfrentamento dessa maneira.
Principalmente quando a fonte de reprodução desse discurso, diante
de mim, for um aluno.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017
QUANTO MAIS PIOR
O Maurílio era
dureza. Antes de ser meu aluno, eu já via como ele era pelo pátio e
corredores da escola. Insubordinado, insubmisso, insubjugável.
Nossa, pra um professor libertário, estas parecem características
ótimas. O problema é que ele não quer saber de qualquer coisa que
você tenha a dizer. E você e ele estão na escola. Nesta escola!
Pública, estatal, capitalista, ocidental, fordista, seriada ou
ciclada, não importa. O que sabemos sobre “escola”, há
gerações, é que um deve falar e o outro deve ouvir. O primeiro é
o professor e o segundo é o aluno. Todos sabemos disso. Inclusive o
Maurílio. Que já tem, desde a mais tenra idade, o estigma de “aluno
problema”, já se subjetivou dessa forma e assim se identifica,
assim se diferencia dos demais. Não importa se você é um professor
“aberto”, progressista ou revolucionário, você é o cara que
está lá para subjugá-lo e ele é o cara que está lá para
resistir, que não se dobra. Que tem uma reputação a zelar, a de
não obedecer a ninguém, muito menos a um professor.
O seu dever, como
professor, é pedir que ele lhe dê alguma atenção e realize a
tarefa proposta. Se ele vai te dar ouvidos, é outra história. Você
pede para ele desligar o celular e é como se você falasse com a
parede. Ele importuna uma colega (as meninas são sempre o alvo
principal, né?) e ela exige que você exerça sua autoridade de
professor e faça com que ele pare. Mas você não tem essa
autoridade. Ao menos a autoridade de fazer um aluno “parar”.
“Que que é, ô
caganêra”! “Eu vô te matá, tu vai vê”!
Essa era a
resposta que eu ouvia ao tentar chamar a atenção do Maurílio.
Bom, mas você
faz o quê? Segue adiante, segue tentando. Uma vez descobri que ele,
junto com o Wendell (falarei mais desse aluno, mas já falei um
pouco, clique aqui), se interessavam muito por questões de
astronomia, planetas, extraterrestres, etc. Preparei atividades
apenas para eles, separadamente do resto da turma. Mas, claro, como
você precisa atender todo mundo, acaba não dando a devida atenção
para eles. E então, essa paixão pelas estrelas não durou muito,
duas aulas, digamos. Porque é justamente esse o problema deles:
falta de alguém para sentar ao lado, conversar, incentivar,
trabalhar junto. E os governos com seu pensamento econômico, com
suas políticas de corte de gastos e enxugamento da máquina pública,
faz o contrário. Isola os alunos. Os professores têm turmas cada
vez mais cheias e aquele atendimento individualizado, que seria o
certo para os dias de hoje, fica mais difícil de ser feito.
Quem quer
resolver o problema?
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017
AS "CORES DO REGGAE"
Você já reparou naquelas pulseirinhas coloridas de verde, amarelo e vermelho? Nas escolas é muito comum ver os meninos e meninas com elas. É como uma identificação coletiva. Muitos carregam as pulseirinhas de tecido ou de outro material, também usam colares, brincos, etc. E quando perguntados sobre o significado das cores, logo respondem: "É as cores do reggae, sôr"! Também respondem, às vezes: "Ah, é a bandeira da Jamaica"!
E como se identificam com esse mundo... usam camisetas de Bob Marley ou com folhas de maconha estilizadas, adoram a Jamaica... às vezes, na sala de aula, percebo que alguns se aproximam do mapa-múndi que fica na parede, colocam o dedo sobre o mapa e começam a procurar... sempre querem saber onde fica a Jamaica. Nossa, como eu gostaria que esse gosto pelo país caribenho se refletisse nas músicas que tocam nos celulares deles. Imagina, flagrar um aluno escutando "I shot the sheriff", em vez de "Bota o bucetão no revólver"! Seria um sonho pra mim.
Bom, você sabe que essas cores não são "as cores do reggae", né? Você encontra essas cores em quase todas as bandeiras dos países africanos. Elas estão lá, de um jeito ou de outro. Representam o "panafricanismo", a união de todos os povos africanos. Como muitas letras de reggae falam da África, da sua história, das suas lutas, da sua exploração, etc. seria natural que os cantores e músicos usassem essa cores. Agora, imagina quando essa gurizada se der conta de que esses símbolos, que ela gosta tanto, carregam toda essa carga histórica. Seria outro sonho pra mim.
Tá aí! Achei outro significado para o verde, amarelo e vermelho. As cores do sonho! Do meu sonho!
quarta-feira, 25 de janeiro de 2017
LEONANDRO
O silêncio. Por que
ele perturba tanto? As pessoas quase sempre se sentem constrangidas,
quando reunidas em um ambiente silencioso. Elas observam-se umas as
outras, olham ao redor, tamborilam com os dedos… enfim, não ficam
confortáveis. Para aquelas que gostam de uma boa conversa, essa situação
pode ser uma tortura.
Raramente
encontramos um ambiente assim em uma sala de aula. E nessas raras
vezes que isso acontece, o silêncio dura, talvez, um minuto. Sempre
há alguém para dizer a famosa frase: “que silêeeencio”…
Na turma do Leonandro, ele quebrava o silêncio de um jeito diferente. Durante as aulas, enquanto eu expunha o trabalho do dia, ou enquanto a turma realizava uma atividade, num raro momento de concentração, sempre escutava a voz dele: “Beterraba”! Ou, às vezes, era: “Repolho”! A turma toda caía na gargalhada e era uma vez a aula que estava tentando dar, tudo ia pro ralo. Ele falava essas coisas sem sentido... nomes de legumes... pfff.... Não sei se ele tinha alguma horta em casa, ou se a família vendia verduras pelas ruas, como aqueles caminhões que passam pelos bairros periféricos, gritando os nomes dos produtos, sei lá.
Na turma do Leonandro, ele quebrava o silêncio de um jeito diferente. Durante as aulas, enquanto eu expunha o trabalho do dia, ou enquanto a turma realizava uma atividade, num raro momento de concentração, sempre escutava a voz dele: “Beterraba”! Ou, às vezes, era: “Repolho”! A turma toda caía na gargalhada e era uma vez a aula que estava tentando dar, tudo ia pro ralo. Ele falava essas coisas sem sentido... nomes de legumes... pfff.... Não sei se ele tinha alguma horta em casa, ou se a família vendia verduras pelas ruas, como aqueles caminhões que passam pelos bairros periféricos, gritando os nomes dos produtos, sei lá.
Mas essa não era a
única coisa estranha em relação a ele. Leonandro era um personagem
bem curioso. Gordinho, tinha a cabeça enterrada nos ombros,
lembrando o tio Fester da Família Adams, e era coxo de uma perna.
Como se já não bastasse essas raras características esquisitas, ele tinha
algum tipo de problema urinário. Em outras palavras, fedia a
mijo.
Você pode imaginar
que um cara assim, sofreria muito na escola, com o bullying
dos colegas, debochando dele o tempo todo, sendo excluido da turma e
tal. Não, nada disso. Ao contrário, era ele o que praticava
o bullying com os demais. Qualquer um era alvo dele, os
negros, os orelhudos, os magrelos, os altos, os baixinhos, os
sardentos, etc. Eu também não escapava das brincadeirinhas dele.
Como tinha barba e cabelo comprido eu era o Jesus Cristo, o Raul
Seixas, etc.
Sempre pensava no
porque disso. Por que os outros aceitavam os deboches dele? Um guri esquisito daqueles. Será que
ele era afilhado do dono da boca e todos o temiam? Mas não, não era esse o caso. Por que, então?
Minha hipótese é
de que aquilo era um tipo de ataque preventivo. Antes que zombassem
dele, ele já disparava a sua metralhadora de babaquice contra todo
mundo. Também podia ser um problema de autoaceitação, ou seja,
aquilo que ele odeia em si próprio, apontava nos demais. Seja o
que for, era muito chato.
Mas, pensando por
outro lado, quem sabe o preconceituoso não era eu? Que enxergava motivos para debochar do Leonandro quando ninguém mais via. Por que fariam isso? Quem sabe, os problemas
estavam em mim, não nele. Mas, assim como podemos dizer que ele não possuía nenhuma característica “naturalmente” bullyinível, – nem a perna renga, nem o fedor de mijo, nem nada –, será que alguém possui?
quarta-feira, 18 de janeiro de 2017
PRESIDENTE ANTHUR
Nessa série de relatos não poderia faltar o Anthur. O aluno mais participativo em aula que já conheci. Diagnosticado com síndrome de Asp... Aspr... um tipo de autismo. Ele tinha fixação por nomes e fatos históricos, países, capitais, etc., o que fazia da minha aula, a preferida por ele. Se fascinava pela história de qualquer nome famoso. Admirava de Getúlio Vargas a Simón Bolívar, de Stalin a John F. Kennedy.
Adorava cantar o hino nacional brasileiro, bem como o riograndense. Bastava pedir a ele que, sem cerimônia alguma, se levantava em posição de sentido e começava a cantá-los em altos brados. Claro que os colegas faziam isso quando queriam zombar dele. E, normalmente, queriam isso o tempo todo. Era um pouco complicado fazer um debate em aula com ele. Quando eu fazia uma pergunta para a classe, ele logo queria responder. O que poderia ser bom, mas em vez de responder a pergunta, ele iniciava um discurso de político (não um discurso político, um discurso de polítco): "No meu governo...", " a corrupção do PT...", "quando eu fundar os Estados Unidos da América Latina...". Lógico todos os colegas odiavam isso e não queriam que ele falasse. O azar é que ele era o único aluno que queria participar da aula, ainda que fosse para fazer a sua campanha presidencial.
Pobre Anthur, a fascinação que ele nutria para com assuntos históricos e geográficos, era a mesma que ele tinha para com as meninas. Pena que ele era o patinho feio da escola. Sempre deprimido. Trocava duas palavras com alguma garota e já estava apaixonado. Infelizmente, nunca era correspondido.
Ele acabou se transferindo para outra escola, naquela não havia mesmo ambiente para ele. Recentemente, pelo facebook, fiquei sabendo que ele concorreu a presidência do grêmio estudantil da sua atual escola. Pelo que entendi, não ganhou. Não dessa vez...
terça-feira, 10 de janeiro de 2017
A HISTÓRIA DO BRASIL EM UMA FRASE
Até agora não havia entrado nenhum relato no blog envolvendo uma menina como protagonista,
não é mesmo? Mas, agora, isso vai mudar. Senhoras e senhoras,
representando as “duronas”, a espetacular Stelaine! Nas
primeiras aulas, até me acostumar com o jeito rude dela, eu
estranhava um pouco. Depois ela se transformou na minha principal
aliada na sala de aula, pena que ela ficou pouco tempo, teve que
deixar a classe para dar à luz sua filhinha. Mas esse curto período
que a conheci já serviu pra me marcar.
Stelaine cresceu sem
os pais, parece que a mãe não tinha condições nenhuma de criá-la,
nem financeira, nem psicológica, nem nada. Sobre o pai, ninguém
tinha qualquer informação. Ela viveu fugindo de abrigos, em casas
de parentes, rodando o mundo. Até que conheceu um homem mais velho e
se casou. No ano que em foi minha aluna, ela tinha 16 anos e estava
no sétimo ano do fundamental, recém regressava aos bancos
escolares, depois de um longo período fora. Habituada já à rotina
e às responsabilidades de um adulto, ela não tinha paciência
alguma com seus colegas mais infantilizados: “Ô, filha da puta!
Não tem respeito”? Ela sempre disparava quando uma bolinha de papel
acertava sua cabeça.
Um dia, numa aula,
comentando os inícios da formação do Brasil, falei da chegada dos
portugueses e das transformações na vida dos povos nativos. Depois
de um breve debate, ela fez uma incrível síntese sobre o assunto,
que professor algum poderia fazer igual. Ela disse:“Então, quer dizer que os
portugueses foram uns baita de uns pau no cú, que vieram aqui pra
robá”?
Me pergunto se existiria uma explicação melhor para a história do Brasil.
quarta-feira, 4 de janeiro de 2017
DROGAS ESCOLARES
Existe muita discussão na sociedade a respeito do que é considerado droga ou
não. Fala-se em drogas lícitas e ilícitas. Alguns defendem o uso
medicinal de um tipo de droga, enquanto outros são executados ou
encarcerados por vender essa mesma droga. O que para alguns
representa um veneno, para outros é um santo remédio. Enfim, a
discussão é interminável. O ambiente escolar não está de modo
algum distante desse debate.
Lembro
do Rael. Ele tinha 14 anos e estava no quinto ano do fundamental. Magrelo, boné enterrado na cabeça, olhos esbugalhados. Sempre
me fazia a mesma pergunta: “Sôr, posso sair”? Rael não
aguentava nem cinco minutos dentro da sala de aula, Para que ele
suportasse meio turno, era preciso uma dose cavalar de um remédio de
tarja preta, não sei qual. Às vezes, ele
vinha à escola sem tomar esse medicamento, provavelmente por
descuido da mãe, imagino. Algum médico o havia diagnosticado com
algum transtorno psiquiátrico, déficit de atenção, hiperatividade, sei lá, e sem essas boletas era impossível a
convivência dele em sociedade. Bom, ao menos nessa sociedade em que vivemos.
Eu
não parava de pensar numa coisa quando estava com ele na sala de
aula: Que porcaria que não é o sistema escolar, não? Um garoto de
14 anos precisa estar chapado para suportá-lo. Infelizmente, não só
os alunos vivem essa realidade. Também muitos docentes lançam mão
do uso desses medicamentos para enfrentarem a pesada rotina. São
muitos os estudos que abordam esse tema.
Bom,
voltando ao Rael, no ano em que trabalhei com ele (o único, graças
a Deus), ele era o assunto principal das reuniões do conselho de
classe dos professores. Uma dessas reuniões me ficou registrada na
memória, pela pouca perspicácia de alguns colegas. Após mais um
relato de caso de indisciplina de Rael na hora do recreio, e depois
de todos os professores terem comentado diversos episódios do tipo
em suas aulas, todos envolvendo ele, alguém levanta o seguinte
questionamento: “Será que ele não usa algum tipo de droga”?
"Claro, a mesma que tu"! Foi o que me deu vontade de responder. Mas fiquei bem quieto. Qual seria uma resposta adequada para essa pergunta?
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