quarta-feira, 10 de maio de 2017

CASAS AMBULANTES

A comunidade em que a minha antiga escola se encontrava, apresentava um grave problema de moradia. Todos sabem o que é isso. Pessoas sem condições financeiras constroem suas casas em áreas "livres" e vão vivendo, até que as expulsam, então elas procuram outro local para construir suas casas, se é que pode se chamar assim as precárias habitações que são construídas. Pois, outro dia, durante uma conversa na sala dos professores (e professoras, aliás, elas são sempre a maioria), comentávamos sobre a ausência de um aluno, o Rui, fazia muito tempo que ele não aparecia. Então, uma colega, que era a professora dele na oficina de robótica, da qual ele gostava muito, comentou ter pedido para um aluno que fosse, se pudesse, até a casa do Rui, para ver o que estava acontecendo com ele, porque faltava tanto.
O menino fez o que ela pediu, mas quando voltou com a resposta, foi trágico e cômico. Ele disse: "Professora, fui até a casa do Rui... mas a casa dele não tava mais lá"...

quinta-feira, 27 de abril de 2017

NOTA 10! E DAÍ?

O fim de ano vem chegando e, na escola, sempre vem aquele problema. Já não há mais o que fazer, muitos alunos já têm uma ideia segura dos seus resultados, uns sabem que passaram, outros sabem que não, as principais avaliações já foram feitas... não há muita motivação para ira a escola, se vai apenas para “cumprir tabela”, realmente.
Num desses dias, como havia poucos alunos, numa turma de sétimo ano em que eu estava, decidi aproveitar o momento para fazer algo diferente, então propus uma conversa. Falaríamos sobre o que acharam do ano, o que pensam fazer no futuro, esse tipo de coisa... uns toparam a ideia, participavam bem, outros, só perguntavam se podiam ir para casa. E, assim, levamos até o final.
Lá pelas tantas, questionei sobre o que achavam das minhas aulas, se aprenderam algo importante. Um deles, disse que achava Geografia importante para saber onde ficam os lugares, os países, etc. Então, perguntei a ele, de que servia saber onde ficam os países?
 – Ah, sôr, se a gente quiser ir viajar, ir viver em outro país...
Nesse momento, pensei sobre quão inútil era eu e aquele meu trabalho... pois, a conclusão que o menino havia chegado era de que ele só aproveitaria um ano inteiro de aula de Geografia, se ele fosse viajar. Quantos alunos meus viajarão para outro país? Que aula mas inútil... Anotei aquele problema para tentar me reinventar no futuro, precisava fazer aulas mais úteis, meu papel não é o de um agente de turismo. Porém, aquele questionamento havia mexido com outra aluna. E então, quando ela falou, o meu sentimento de que meu trabalho não servia para nada, apenas se confirmou. As palavras dela foram sinceras, e duras, me senti rebaixado ao nível de uma formiga.
A menina falou, de uma maneira natural, sobre como o que ela aprendeu até aquele momento na escola, não havia lhe sido útil de forma alguma. Segundo ela, em nenhuma entrevista de emprego perguntam sobre nada do que se ensina numa sala de aula. Entrevistador nenhum quer saber dessas coisas que se aprende em Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e, principalmente, em Geografia. Procurei questioná-la, mas não tentei defender o contrário. Pensei que, se até aquela altura do campeonato, a escola ainda não havia convencido aquela menina da sua importância, então não tinha muito o que eu fazer naquele momento.
Mas, como que para colocar aquela cereja no bolo da discussão, outra aluna comenta, com muita tranquilidade, sobre como seu irmão mais velho abandonou a escola para traficar drogas. E, depois que já havia adquirido algumas propriedades, imóveis, etc. decidiu que, então, já era hora de largar essa atividade, um tanto perigosa, e viver dos aluguéis de suas casas. Alguns colegas se impressionaram, outros criticaram... Mas, no fim, o irmão dela era apenas um homem de negócios, não? Talvez as aulas de Matemática tenham o ajudado, quem sabe, mas Geografia, acho que não. 

O que aprendemos com tudo isso? Com essas opiniões dos alunos? Acho que muito, mas só se estivermos dispostos a rever nossos papeis.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

MISTÉRIOS DA SALA DE AULA

Existem algumas coisas engraçadas sobre os alunos, essas coisas possuem uma lógica muito particular, apenas entendida por eles. Já fui um aluno, já estive sentado no lugar em que eles estão agora. Mas confesso, não sei se pelo fato de ser há muito tempo, não entender mais muitas dessas coisas, se é que, algum dia, entendi.
Por exemplo, a questão de jogar bolinha de papel no lixo. O guri passa a aula inteira em pé, andando pela sala, incomoda um, puxa o cabelo daquela, toma o celular de outro. Faz uma verdadeira excursão por todos os pontos da sala de aula. Mas, se for para jogar papel no lixo, ele não irá caminhar até lixeira, ele sempre se senta na classe dele, que é, geralmente, bem longe, e tenta acertar a lata de lixo. De onde vem essa preguiça repentina? Gostaria de saber.
Outro momento muito curioso é quando você tenta expor um assunto verbalmente, ou seja, uma aula expositiva. Você, então, quer explicar algo antes de passar a tarefa, para ajuda-los a realiza-la, e isso, infelizmente, se torna algo impossível. Os alunos conversam entre si, em voz alta, ouvem música no celular, se levantam. Você acaba brigando com todos, dá um sermão sobre escutar o próximo e etc, etc. E isso não adianta porra nenhuma. Então, você se cansa, já se desgastou demais tentando falar e se vira para o quadro para passar a tarefa, sem explicação mesmo, azar. Nesse momento, todos se calam e começam a copiar. De repente, a sala fica em silêncio. E me pergunto, por que não dá pra acontecer o contrário, deixarem para conversar depois da explicação? Outro mistério insolúvel.
Por fim, a última lógica difícil de entender para mim é a daquele aluno que faz absolutamente tudo o que ele quer na sala de aula, ouve música, joga videogame, anda pela sala, joga pião, bate figurinhas, etc. não se importa um ovo com você, tá se lixando se você está na sala ou não. De repente, ele chega perto de você e diz: “Sôr, dá pra ir no banheiro”? E me pergunto, por que minha autoridade só serve para deixar ir ao banheiro? Não tenho poder sobre mais nada na aula, exceto o salvo conduto até o banheiro.

Quem sabe alguém possa me auxiliar a desvendar esses mistérios, até agora não consegui.  

quarta-feira, 5 de abril de 2017

TÊNIS NOVOS

A noite tinha sido agitada na comunidade, os alunos relataram ouvir o som de tiros, foram muitos. Me lembro da fala de uma aluna quando chegou na sala de aula: “É foda, véio! Tu tá saindo de casa pra ir pro colégio, e tem um corpo morto atirado bem na tua esquina”! Eu nem imagino o que deve ser isso. Não passei por nada parecido quando cursava o antigo 1° grau. O máximo que vi foi alguma galinha morta na esquina da escola, recheada com pipoca. Nunca uma pessoa.
Os alunos lidam de formas diferentes com essa situação, assim como essa aluna pareceu impressionada e indignada com esse fato, outros já se importam bem menos. É o caso do Daniel, onze anos de idade, um metro e vinte de altura, mas se comportava como um adulto. É estranho de ver, difícil de explicar, tu tens que ver para entender, quaisquer palavras que eu use aqui não servirão para descrevê-lo. Mas, não tem outro jeito, tenho que tentar.
O olhar dele já não era o de uma criança há muito tempo, sabe, tinha aquela “maldade”, aquela “esperteza que só tem quem tá cansado de apanhar”, como diz a música dos Paralamas. E a maneira de falar, então... sempre ameaçador, agressivo, cheio das gírias... se via que ele não convivia com crianças da sua idade... A pele sempre encardida, as roupas sujas, gastas, sempre de um número maior que o dele. Esse era o Daniel, vivia como um cachorro abandonado...
Ele entrou nessa história porque no dia em que a comunidade acordou com um corpo jogado em uma esquina, o Daniel chegou na escola com um par de tênis novos, muito maiores que os pés dele. Quando uma professora estranhou aquela situação e perguntou de onde ele havia tirado aqueles tênis esquisitos, ele respondeu tranquilamente que tinha sido daquele cadáver.

E assim segue a educação nas comunidades periféricas do Brasil, entre cadernos e cadáveres, canetas e armas... antes de terminar aquele ano, o Daniel tentou sair empurrando minha moto pelo portão da escola, os funcionários que viram o pararam. Até onde ele iria? Não sei... admito que fiquei um pouquinho feliz quando aquele ano acabou.  

quarta-feira, 29 de março de 2017

NEVER GIVE UP!

Já falei sobre o Wendel em outro post (clique aqui), mas agora quero me deter um pouco mais nele, nunca vi outro igual. Sofria de um grave problema de saúde que atrofiou seu crescimento, de modo que ele já tinha 16 anos quando o conheci, mas sua aparência era de 11 anos de idade. Baixinho, corpo franzino, parecia um boneco de marionete. Tudo nele inspirava fragilidade. Apesar disso os demais o tratavam com reverência, ainda não estou bem certo do motivo disso.
Se notava nos antebraços e canelas algumas tatuagens, daquelas verdes, bem toscas. Tinha as clássicas que todos os meninos de vila fazem, um diamante, o nome da mãe e um palhaço. Havia outras ainda, mas não lembro. Esses são alguns dos elementos que diferenciam os garotos. Uns fazem essas tatuagens por “zoeira”, já outros dominam esses códigos, e isso os aproxima ainda mais. Wendel, pequenino, se destacava em meio aos outros grandões. Eu notava, que ele dominava uma conversação entre eles, os demais o escutavam, riam de suas piadas sujas... o respeitavam.
Na sala de aula era um problema. Ele também tinha uma dificuldade tremenda para ler e escrever. Era tão difícil que ele nem tentava mais, o caderno permanecia na mochila, o tempo todo da aula. Mas o celular, carregado de músicas de funk e imagens de cadáveres e execuções, estava sempre à mão. Nunca soube o que fazer para que o conteúdo de geografia o interessasse, mas uma vez ele me deu uma luz.
Durante uma aula, ele e o Maurilio (já falei dele, clique aqui) conversavam e riam no fundo da sala. Decidi pedir para que o Wendel contasse alguma história engraçada para a turma, todos queriam rir também. Então, ele resolveu criar alguma coisa de improviso:
– Sabe professor... uma vez, o prefeito dos Estados Unidos me chamou para uma missão espacial... (eu já comecei a rir) Só que eu não fui, porque não tinha roupa de astronauta do meu tamanho!
Todos riram, e ele contou outras histórias, entre elas a que o pai dele era veterano de guerra, defendera Marte na “Star Wars”. Eram coisas sem sentido, que faziam todos rir por sua maneira de falar.
Então, depois desse dia, achei que tinha captado a mensagem. “Vou falar de astronomia com o Wendel”. Trouxe um vídeo sobre colonização em Marte. Ele e o Maurilio gostaram, mas o resto da turma, não muito. Então tentei trazer atividades, livros, folhinhas, etc. para trabalhar só com os dois. Mas era difícil, eles não eram disciplinados para trabalharem sozinhos, quando deixava eles, para atender outros alunos, logo se distraiam com outras coisas. Era bem difícil.
No fim do ano, conheci a mãe do Wendel, e eu julgava que ele nem tivesse uma. Ela recebeu a avaliação dele, havia sido aprovado em condições especiais, e ouviu o que os professores tinham a falar sobre ele. Doeu bastante ver a desesperança no rosto dela, que se justificava falando que trabalhava o dia todo e não conseguia educar nem o Wendel, nem os irmãos dele. É muito ruim não poder dizer alguma coisa reconfortante para uma pessoa desolada e eu, de fato, não tinha nada de bom pra falar sobre o Wendel, fora que ele contava histórias engraçadas.
No fim, depois de tanto pensar em algo positivo para dizer, vi que ela usava uma blusinha com uma frase em inglês: “Never give up!” Lhe disse o que significava, ela abaixou o rosto e começou a rolar lágrimas de seus olhos.
Hoje eu não sei como está essa família. Espero que nunca desistam de lutar.



quarta-feira, 22 de março de 2017

A GREVE É UMA COISA PESSOAL DE CADA UM

“A greve é uma coisa pessoal de cada um”!
Já escutei essa pérola em uma dessas salas de professores da vida... Como uma categoria de nível intelectual tão alto e que tem tantos direitos atacados, é capaz de produzir pensamentos desse calibre?
Esqueça os discursos sindicais, do tipo: “Nossa categoria é unida!”, “Fizemos uma greve vitoriosa!” Isso não passa de blefe. Há anos não vejo uma vitória convincente de uma luta de professores, há anos não vejo união nessa categoria. Falemos francamente, não procuremos mentir para nós mesmos.
Isso é uma coisa meio paradoxal, pois nas escolas sempre há algum projeto que traz como tema a “solidariedade”, a “união”, o “protagonismo”, a “cooperação” ... Sempre se discursa para os alunos sobre a importância de se lutar por um mundo melhor, de se exercer a cidadania, etc. Porém, quando os próprios professores são chamados a praticar todas essas ideias, coisas mais importantes aparecem: o fim de semana na praia, o jantar no restaurante, a viagem marcada, as compras no supermercado... tantas coisas... Tudo que dissemos se transformam em palavras vazias.
Por que isso é assim? Difícil dizer. Apesar de sermos a categoria de nível superior mais mal paga do Brasil, ainda pensamos que somos de uma classe à qual não pertencemos, e tampouco nos querem nela. Colocamos nossos filhos em escolas particulares, pois não queremos que sejam como nossos alunos. Trabalhamos, às vezes, sessenta horas por semana, para podermos manter uma empregada arrumando nossa casa, pagar a taxa do condomínio fechado, para pagar a parcela do carro novo, a mensalidade TV a cabo, enfim... Temos pavor dos alunos e suas famílias, que vivem em terrenos “invadidos”, que tem ligação direta de luz e assinam “gatonet”. Não queremos ser como eles. Somos de mundo diferentes. Assim, talvez, acreditem alguns.


Quem sabe, quando admitirmos para nós mesmos que temos muito mais em comum com as pessoas que estão nas nossas salas de aula todos os dias, do que com as que estão no comercial do Zaffari (uma rede de supermercados de Porto Alegre), comecemos a agir de forma diferente.

terça-feira, 14 de março de 2017

REBELDES DO SÉCULO XXI

Esqueça os cabelos compridos e as camisetas do Che Guevara. Temos novos rebeldes nas salas de aulas. Eles são tão críticos quanto os da geração anterior, dão suas opiniões em sala de aula, criticam o conteúdo do livro didático e gostam de falar sobre política. Legal, não é mesmo? Porém, eles possuem novas referências (ou seriam velhas?).
Tenho alunos assim, são admiradores de Bolsonaro. Um deles chegou a aparecer na escola vestindo camiseta com a estampa desse senhor. Acham, os tolinhos, que a Dilma era comunista e que o Brasil estava prestes a se tornar um país comunista. “O comunismo não deu certo em lugar nenhum, sôr”! – me dizia um deles. “Nem em Cuba, nem na China, nem na Venezuela”. Pois é, para eles, a Venezuela é um país comunista. Festejaram quando Donald Trump venceu as eleições nos EUA. Achavam que a Hilary Clinton era de esquerda, e a esquerda representa o mal, na opinião deles. PT, esquerda, bandidos, terroristas, Venezuela, Cuba, MST, PCC, Lula, Dilma, Maria do Rosário... tudo isso faz parte de um espectro ameaçador, que é o comunismo.
Entenderam, lá das fontes que eles consultam, que o comunismo é um regime autoritário (não estão tão errados, se pensarmos no bloco soviético) e que tem o objetivo de empobrecer todo mundo. Numa conversa, um me disse, certa vez: “Esse teu esquerdismo, sôr, só vai fazer com que os ricos fiquem pobres e os pobres continuem pobres”. Sempre me perguntava, como garotos que moram em um dos mais pobres bairros de Porto Alegre podem se preocupar com a pobreza dos ricos. Me diziam: “Não pode, sôr, se alguém é rico é porque trabalhou”!
E eu, diante disso, não vou me posicionar? Pelo contrário, diante de pensamentos tão bem cristalizados, eu tentava ao máximo defender o que penso. O que devo dizer? Que com trabalho duro, você pode “vencer”? Conhece mentira pior que essa? É certo que o bloco soviético não me inspira confiança para defendê-lo, muito menos os anos de PT no governo brasileiro, recheado de ataques ao povo e ao meio ambiente. Diante desse cenário, esses jovens não canalizarão seu sentimento de rebeldia, tão típico dessa idade, para os ícones da esquerda, não se identificarão com eles.
Pois é, a esquerda faz toda essa sujeira e eu, na sala de aula, tenho que tentar limpar um pouco. Para que os rebeldes do século XXI não tenham Bolsonaro como referência.



quarta-feira, 8 de março de 2017

O "CARA DA SMED"

 Imagina você professor, professora, desenvolvendo sua aula e um aluno perambulando pela sala,  ouvindo música alta no celular, rindo, mexendo com os colegas. Ele tem a mochila ainda nas costas, porque abri-la para tirar o caderno e realizar alguma tarefa, está fora de questão para ele. Pedir para que ele se sente tem o mesmo efeito que falar com uma parede. Você procura atender os alunos interessados, distribui folhas com atividades, passa tarefa para ser feita no caderno, etc. Aquele cara zanzando pela sala não participa de nada que você propõe. Você observa os seus alunos dia a dia, o  empenho deles com a própria aprendizagem, a sua participação, etc. e, então, no final do ano, você define que ele rapazinho da mochila nas costas não terá a mesma avaliação que os demais, ele não tem condições de seguir adiante. Outros colegas professores chegaram a essa mesma conclusão: o alegre moço da mochila precisa repetir aquele ano, infelizmente, quem sabe ele se concentra mais no próxmo ano. Decisão tomada, batemos o martelo. Seguimos adiante... Seguimos? Não. É que existe uma outra instância, maior do que você que acompanhou o ano inteiro aquele aluno.
Essa instância é o “cara da SMED” (Secretaria Municipal de Educação). Ele vai se sentar com a supervisora da escola e vai perguntar sobre todos os alunos problemáticos. E ele vai tomar conhecimento da situação daquele mocinho e vai dizer: "Quero ver os trabalhos desse aluno". A supervisora vai responder: "é... bem... ele não fez trabalho algum, os professores não tem nada dele". O cara pergunta: "E esse aluno tem condições de aprender"? A supervisora conhece o aluno, sabe que ele tem condições intelectuais, apenas decidiu que não faria nada na sala de aula, então ela responde:"sim, ele tem". E aí, por “falta de provas” e pelo fato do aluno, aparentemente, não ter maiores problemas mentais, tipo confundir um elefante com uma borboleta, esse cara vai decidir, por cima da escola inteira, que esse rapazinho vai passar de ano, sim senhor!
E, quando começar o próximo ano letivo, estará lá ele, o carinha da mochila nas costas, andando pela sala. Na mesma sala que os seus coleguinhas que fizeram todos os trabalhos e demonstraram empenho durante o ano anterior. Esses outros alunos olharão para ele e depois para você. E a indagação no rosto deles será do tipo: “que merda ele tá fazendo aqui”?

E você fará para si mesmo, essa mesma pergunta. “Que merda EU tô fazendo aqui”?

quarta-feira, 1 de março de 2017

PANELAS IGNORADAS

Era uma tarde chuvosa, daquelas que você tem vontade de fazer qualquer coisa, menos sair de casa. Mas, apesar de tudo, estava na sala de aula com os alunos. Não lembro que assunto era, só lembro quando um som de paneladas e gritos chamaram nossa atenção e fomos todos para a janela. Não, não. Não eram as panelas do Moinhos de Vento, se você quer saber, bairro nobre de Porto Alegre, bastião da “luta” contra a corrupção no Brasil, onde madames e mauricinhos brincavam de “Anos Rebeldes”. Quem produzia o som que nos chamou a atenção, era um grupo pequeno de moradores de uma área ocupada, perto da escola. Lugar de moradia de muitos alunos.

Perguntei se os alunos sabiam o que estava acontecendo.
– Vão tirar a “invasão” de lá, sôr! Vão expulsá todo mundo! – Me respondeu um aluno.
– Mora algum colega de vocês? – foi minha pergunta seguinte.
– Ih, mora “força” de nêgo daqui do colégio, sôr! Dessa turma aqui, mora o Binho!
Reparei que o Binho não tinha aparecido na aula naquele dia, quem sabe estivesse lá, junto com a família, lutando para que sua casa não fosse demolida. Ficamos observando a movimentação, o grupo subia por uma rua e desaparecia entre as casas. Na certa, tentavam chegar nas avenidas principais do bairro, para tentar fazer seu problema ser conhecido por todos. Os alunos me relataram que o despejo estava para acontecer na próxima semana.
E assim, foi. No dia marcado, caminhões de mudança, oficiais de justiça, helicóptero, ambulâncias e forte aparato policial tomaram o bairro. Eram dezenas de policiais, os mesmos que nunca estavam lá para impedir um tiroteio ou um assassinato. Não tive coragem de ir até lá para encarar a tristeza na cara das pessoas que perdiam suas casas (se é possível chamar assim os barracos em que viviam). Alguns colegas foram lá para ver o que podiam fazer, encontrar algum aluno, dar alguma palavra de consolo... Há muito pouco a se fazer nessas horas. Muitas famílias não tinham para onde ir, não sabiam o que fazer. Algumas iam para casa de parentes, no bairro mesmo ou em outro.
Como resultado, aqueles alunos que ali viviam e que já não tinham muita organização para a vida escolar, um lugar para guardar suas coisas ou estudar, ficaram numa situação pior ainda, mais relapsos e menos frequentes nas aulas. Este é o drama habitacional brasileiro, que governo algum conseguiu eliminar e que afeta diretamente a educação daquelas crianças que não possuem uma moradia fixa e adequada.

Naquele dia, eu decidi que o Binho e os demais alunos que ali viviam, não seriam cobrados como os demais na minha disciplina. Não avisei isso a eles. O que você faria? Eu não vou reter um aluno na minha disciplina se ele nem ao menos vai ter uma casa, com um quarto, com uma escrivaninha, com um computador, enfim... para se recuperar comigo. Essa conta não é só minha, é de todo mundo.  

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

PÓLVORA ESCOLAR

– Olha ali, são os “contra”! – Disse o garoto Ismael, apoiado na janela do corredor do pavilhão de aulas, que dava para o fundo da escola.
Há alguns meses a vila andava sobressaltada com uma guerra de facções pelo controle dos pontos de tráfico. Eram frequentes as incursões de traficantes de outras partes da cidade para matar desafetos, intimidar ou, simplesmente demonstrar força, naquela vila. Naquele dia, a escola havia recebido um aviso dos traficantes locais, trazido por moradores, de que as aulas deveriam ser suspensas ao meio-dia, devido a uma possível invasão na vila, o que poderia levar a um tiroteio entre facções. A direção da escola, preferiu esperar um pouco mais para tomar uma decisão. Afinal, suspender um dia de aula assim, através de um recado boca a boca... não parece ser um procedimento correto.
Antes do aluno Ismael lançar seu alerta para o que estava acontecendo do outro lado da janela, havíamos escutado um som, como de um tiro, porém, nesse primeiro momento, ninguém deu muita atenção, pois, o tempo inteiro garotos detonam bombinhas e rojões próximo a escola, de todas as maneiras possíveis, de modo que ninguém mais se assustava com qualquer coisa. Mas, quando Ismael falou, todos fomos a janela ver o que era, eu e mais os outros quatro alunos da oficina de meio ambiente. Um carro branco estava parado no meio da rua com a porta aberta, um homem com um pé do lado de fora, sem descer totalmente do carro, apontava um revólver para o céu. Nesse momento, ele deu mais um tiro. Parece que o recado boca a boca era sério.
Esse carro branco arrancou e foi para frente da escola, parou de novo e outro tiro foi disparado para o alto. Quem estava no pátio, fazendo aula de educação física, correu desesperadamente para se abrigar, se esconder, fugir ou sabe-se lá o quê. Eu permaneci no pavilhão de cima com os alunos, dava pra acompanhar todo o movimento e parecia um lugar seguro, era melhor ficar por lá e esperar a orientação do que fazer.
Naquela altura, o cheiro de pólvora havia tomado a escola. Pude notar a adrenalina que tomou conta dos garotos. Não estavam assustados. Contavam causos de seus tios, amigos ou irmãos que fazem parte de facções ou que estão presos, falavam sobre as armas que já viram na vila, que já pegaram na mão, etc. Aquilo tudo era como parte do dia a dia. Até as músicas que eles ouvem contam isso.
O fato é que, até então, não sabíamos nada de certo, quem eram aquelas pessoas naquele carro branco, porque fizeram aquilo, não se sabia nada. Os meninos deduziram que eram os “contra”, ou seja, traficantes rivais, de fora da vila
De repente, um carro cinza passa pela rua lateral à escola, em alta velocidade, ia para a mesma direção que o carro branco anterior havia ido.
– Olha lá, aqueles são os “guri”! Os “guri” vão pegá eles! Bá, os “guri” têm até metralhadora!
Os “guri”... é a maneira carinhosa de se referir aos membros do tráfico local. Afinal de contas, fazem parte dele, os seus vizinhos, conhecidos, às vezes amigos e até parentes.
Os garotos já haviam construído o roteiro de um "filme", que era mais ou menos assim: Os malignos “contra” chegaram pra intimidar a vila, atirando para o alto perto da escola. De repente, os destemidos “guri” surgem para acabar com a petulância desses vilões e vão ao encontro deles para defender a sua comunidade.
Depois, se soube que eram membros da facção local mesmo, que fizeram aquilo, de atirar para o alto, para forçar o fechamento da escola. Você vê, na verdade, eles estavam preocupados com a segurança dos alunos e professores, para que não ficassem na linha de tiro, quando a guerra começasse. Porém, quando estávamos lá em cima no último andar do pavilhão de aulas, vimos um outro filme, bem mais empolgante.
Na verdade, foi divertido. Ficamos sentados nas classes, olhando pela janela. Os meninos estavam na expectativa dos próximos acontecimentos. Qualquer carro que passava era apontado.
– olha lá, outro carro cinza! – ali, ali, um carro vermelho! – Lá, um carro verde! – uma bicicleta! – uma carroça...
Bom, no final das contas, naquele dia saímos mais cedo. Eu nunca tinha passado por uma situação daquelas e pensei, quantas vezes isso acontece nas vilas e favelas por esse Brasil? O que podemos esperar desses meninos e meninas, pra quem a violência é uma cultura? Como pode a escola agir nesse contexto? Os defensores do projeto Escola Sem Partido têm alguma proposta quanto a isso?



quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

SÔR, VAI CONTINUAR MEU AMIGO?

O escritor Umberto Eco, no final dos seus dias, disse que a internet deu voz aos imbecis. Acredito que isso seja verdade. Além de imbecilidades, também temos as notícias falsas. Tudo espalhado como a maior das verdades. Os imbecis produzem e outros, compartilham. Asneiras como o feminismo ser culpado pelo aumento da quantidade de gays e lésbicas no mundo, idiotices como os direitos humanos defenderem bandidos, estupidezes como a política de cotas tirar os direitos dos que são brancos ou, o mais ridículo, postagens de apoio às políticas de Donald Trump, feitas por brasileiros, que nunca conseguirão entrar nos Estados Unidos e desfrutar dos benefícios deste belo país.
Você poderia pensar: “Deixa esses imbecis pra lá! Manda eles à merda e exclui do seu facebook”! Mas, quando o “imbecil” é um aluno, ou ex-aluno seu? Que você acompanha ou acompanhou em aula, viu seus progressos, o ajudou pensar, a chegar a suas próprias conclusões. E, de repente, a conclusão que ele chegou é de que ele prefere viver sob a censura de uma ditadura do que ter “sua família morta por um vagabundo”.
A ditadura de 1964, acabou com os “vagabundos”? Ah, os vagabundos, esses seres sempre citados quando se quer defender um regime de exceção, o que seria do discurso de ódio se não fossem eles? Bolsonaro, Luís Carlos Prates, Oswaldo de Carvalho, Rogério Mendelski, esses caras devem tanto aos vagabundos!
Normalmente, caras como eles atacam regimes como o cubano ou o da Coréia do Norte. Haveria que se perguntar se nesses países, com suas políticas autoritárias, a “vagabundagem” tem vez. E, dependendo da resposta, haveria que se perguntar se esses caras estão interessados, então, em liberdade e democracia ou em punir os “vagabundos”.
Bom, o fato é que com frequência me envolvo em discussões de internet com meus alunos e ex-alunos. Todos, muito cedo, já se consideram de direita e anticomunistas, seja lá o que isso signifique. Numa dessas, terminando uma conversa, onde discutimos muito, o menino me escreve: “Sôr, vamos continuar amigos, né”? Como posso eu tratá-lo? Como um imbecil? Como um fascista? Claro, que eu disse que continuaríamos amigos. E o que mais eu diria? Sei que a educação é um caminho sem fim, basta manter a cabeça aberta e você sempre aprenderá. Segundo Paulo Freire, você só para de aprender quando achar que já sabe tudo. Eu acredito nisso.

Sempre fazer perguntas, e mais perguntas, quando encontrar um discurso de ódio pela frente. Escolhi fazer meu enfrentamento dessa maneira. Principalmente quando a fonte de reprodução desse discurso, diante de mim, for um aluno.  

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

QUANTO MAIS PIOR



O Maurílio era dureza. Antes de ser meu aluno, eu já via como ele era pelo pátio e corredores da escola. Insubordinado, insubmisso, insubjugável. Nossa, pra um professor libertário, estas parecem características ótimas. O problema é que ele não quer saber de qualquer coisa que você tenha a dizer. E você e ele estão na escola. Nesta escola! Pública, estatal, capitalista, ocidental, fordista, seriada ou ciclada, não importa. O que sabemos sobre “escola”, há gerações, é que um deve falar e o outro deve ouvir. O primeiro é o professor e o segundo é o aluno. Todos sabemos disso. Inclusive o Maurílio. Que já tem, desde a mais tenra idade, o estigma de “aluno problema”, já se subjetivou dessa forma e assim se identifica, assim se diferencia dos demais. Não importa se você é um professor “aberto”, progressista ou revolucionário, você é o cara que está lá para subjugá-lo e ele é o cara que está lá para resistir, que não se dobra. Que tem uma reputação a zelar, a de não obedecer a ninguém, muito menos a um professor.
O seu dever, como professor, é pedir que ele lhe dê alguma atenção e realize a tarefa proposta. Se ele vai te dar ouvidos, é outra história. Você pede para ele desligar o celular e é como se você falasse com a parede. Ele importuna uma colega (as meninas são sempre o alvo principal, né?) e ela exige que você exerça sua autoridade de professor e faça com que ele pare. Mas você não tem essa autoridade. Ao menos a autoridade de fazer um aluno “parar”.
“Que que é, ô caganêra”! “Eu vô te matá, tu vai vê”!
Essa era a resposta que eu ouvia ao tentar chamar a atenção do Maurílio.
Bom, mas você faz o quê? Segue adiante, segue tentando. Uma vez descobri que ele, junto com o Wendell (falarei mais desse aluno, mas já falei um pouco, clique aqui), se interessavam muito por questões de astronomia, planetas, extraterrestres, etc. Preparei atividades apenas para eles, separadamente do resto da turma. Mas, claro, como você precisa atender todo mundo, acaba não dando a devida atenção para eles. E então, essa paixão pelas estrelas não durou muito, duas aulas, digamos. Porque é justamente esse o problema deles: falta de alguém para sentar ao lado, conversar, incentivar, trabalhar junto. E os governos com seu pensamento econômico, com suas políticas de corte de gastos e enxugamento da máquina pública, faz o contrário. Isola os alunos. Os professores têm turmas cada vez mais cheias e aquele atendimento individualizado, que seria o certo para os dias de hoje, fica mais difícil de ser feito.

Quem quer resolver o problema?

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

AS "CORES DO REGGAE"


Você já reparou naquelas pulseirinhas coloridas de verde, amarelo e vermelho? Nas escolas é muito comum ver os meninos e meninas com elas. É como uma identificação coletiva. Muitos carregam as pulseirinhas de tecido ou de outro material, também usam colares, brincos, etc. E quando perguntados sobre o significado das cores, logo respondem: "É as cores do reggae, sôr"! Também respondem, às vezes: "Ah, é a bandeira da Jamaica"!

E como se identificam com esse mundo... usam camisetas de Bob Marley ou com folhas de maconha estilizadas, adoram a Jamaica... às vezes, na sala de aula, percebo que alguns se aproximam do mapa-múndi que fica na parede, colocam o dedo sobre o mapa e começam a procurar... sempre querem saber onde fica a Jamaica. Nossa, como eu gostaria que esse gosto pelo país caribenho se refletisse nas músicas que tocam nos celulares deles. Imagina, flagrar um aluno escutando "I shot the sheriff", em vez de "Bota o bucetão no revólver"! Seria um sonho pra mim.
Bom, você sabe que essas cores não são "as cores do reggae", né? Você encontra essas cores em quase todas as bandeiras dos países africanos. Elas estão lá, de um jeito ou de outro. Representam o "panafricanismo", a união de todos os povos africanos. Como muitas letras de reggae falam da África, da sua história, das suas lutas, da sua exploração, etc. seria natural que os cantores e músicos usassem essa cores. Agora, imagina quando essa gurizada se der conta de que esses símbolos, que ela gosta tanto, carregam toda essa carga histórica. Seria outro sonho pra mim. 
Tá aí! Achei outro significado para o verde, amarelo e vermelho. As cores do sonho! Do meu sonho!

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

LEONANDRO

O silêncio. Por que ele perturba tanto? As pessoas quase sempre se sentem constrangidas, quando reunidas em um ambiente silencioso. Elas observam-se umas as outras, olham ao redor, tamborilam com os dedos… enfim, não ficam confortáveis. Para aquelas que gostam de uma boa conversa, essa situação pode ser uma tortura.
Raramente encontramos um ambiente assim em uma sala de aula. E nessas raras vezes que isso acontece, o silêncio dura, talvez, um minuto. Sempre há alguém para dizer a famosa frase: “que silêeeencio”…
Na turma do Leonandro, ele quebrava o silêncio de um jeito diferente. Durante as aulas, enquanto eu expunha o trabalho do dia, ou enquanto a turma realizava uma atividade, num raro momento de concentração, sempre escutava a voz dele: “Beterraba”! Ou, às vezes, era: “Repolho”! A turma toda caía na gargalhada e era uma vez a aula que estava tentando dar, tudo ia pro ralo. Ele falava essas coisas sem sentido... nomes de legumes... pfff.... Não sei se ele tinha alguma horta em casa, ou se a família vendia verduras pelas ruas, como aqueles caminhões que passam pelos bairros periféricos, gritando os nomes dos produtos, sei lá.
Mas essa não era a única coisa estranha em relação a ele. Leonandro era um personagem bem curioso. Gordinho, tinha a cabeça enterrada nos ombros, lembrando o tio Fester da Família Adams, e era coxo de uma perna. Como se já não bastasse essas raras características esquisitas, ele tinha algum tipo de problema urinário. Em outras palavras, fedia a mijo.
Você pode imaginar que um cara assim, sofreria muito na escola, com o bullying dos colegas, debochando dele o tempo todo, sendo excluido da turma e tal. Não, nada disso. Ao contrário, era ele o que praticava o bullying com os demais. Qualquer um era alvo dele, os negros, os orelhudos, os magrelos, os altos, os baixinhos, os sardentos, etc. Eu também não escapava das brincadeirinhas dele. Como tinha barba e cabelo comprido eu era o Jesus Cristo, o Raul Seixas, etc.
Sempre pensava no porque disso. Por que os outros aceitavam os deboches dele? Um guri esquisito daqueles. Será que ele era afilhado do dono da boca e todos o temiam? Mas não, não era esse o caso. Por que, então?
Minha hipótese é de que aquilo era um tipo de ataque preventivo. Antes que zombassem dele, ele já disparava a sua metralhadora de babaquice contra todo mundo. Também podia ser um problema de autoaceitação, ou seja, aquilo que ele odeia em si próprio, apontava nos demais. Seja o que for, era muito chato.
Mas, pensando por outro lado, quem sabe o preconceituoso não era eu? Que enxergava motivos para debochar do Leonandro quando ninguém mais via. Por que fariam isso? Quem sabe, os problemas estavam em mim, não nele. Mas, assim como podemos dizer que ele não possuía nenhuma característica “naturalmente” bullyinível,   nem a perna renga, nem o fedor de mijo, nem nada  –, será que alguém possui?

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

PRESIDENTE ANTHUR


Nessa série de relatos não poderia faltar o Anthur. O aluno mais participativo em aula que já conheci. Diagnosticado com síndrome de Asp... Aspr... um tipo de autismo. Ele tinha fixação por nomes e fatos históricos, países, capitais, etc., o que fazia da minha aula, a preferida por ele. Se fascinava pela história de qualquer nome famoso. Admirava de Getúlio Vargas a Simón Bolívar, de Stalin a John F. Kennedy.

 Adorava cantar o hino nacional brasileiro, bem como o riograndense. Bastava pedir a ele que, sem cerimônia alguma, se levantava em posição de sentido e começava a cantá-los em altos brados. Claro que os colegas faziam isso quando queriam zombar dele. E, normalmente, queriam isso o tempo todo. Era um pouco complicado fazer um debate em aula com ele. Quando eu fazia uma pergunta para a classe, ele logo queria responder. O que poderia ser bom, mas em vez de responder a pergunta, ele iniciava um discurso de político (não um discurso político, um discurso de polítco): "No meu governo...", " a corrupção do PT...", "quando eu fundar os Estados Unidos da América Latina...". Lógico todos os colegas odiavam isso e não queriam que ele falasse. O azar é que ele era o único aluno que queria participar da aula, ainda que fosse para fazer a sua campanha presidencial.
Pobre Anthur, a fascinação que ele nutria para com assuntos históricos e geográficos, era a mesma que ele tinha para com as meninas. Pena que ele era o patinho feio da escola. Sempre deprimido. Trocava duas palavras com alguma garota e já estava apaixonado. Infelizmente, nunca era correspondido. 
Ele acabou se transferindo para outra escola, naquela não havia mesmo ambiente para ele. Recentemente, pelo facebook, fiquei sabendo que ele concorreu a presidência do grêmio estudantil da sua atual escola. Pelo que entendi, não ganhou. Não dessa vez... 

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

A HISTÓRIA DO BRASIL EM UMA FRASE



Até agora não havia entrado nenhum relato no blog envolvendo uma menina como protagonista, não é mesmo? Mas, agora, isso vai mudar. Senhoras e senhoras, representando as “duronas”, a espetacular Stelaine! Nas primeiras aulas, até me acostumar com o jeito rude dela, eu estranhava um pouco. Depois ela se transformou na minha principal aliada na sala de aula, pena que ela ficou pouco tempo, teve que deixar a classe para dar à luz sua filhinha. Mas esse curto período que a conheci já serviu pra me marcar.
Stelaine cresceu sem os pais, parece que a mãe não tinha condições nenhuma de criá-la, nem financeira, nem psicológica, nem nada. Sobre o pai, ninguém tinha qualquer informação. Ela viveu fugindo de abrigos, em casas de parentes, rodando o mundo. Até que conheceu um homem mais velho e se casou. No ano que em foi minha aluna, ela tinha 16 anos e estava no sétimo ano do fundamental, recém regressava aos bancos escolares, depois de um longo período fora. Habituada já à rotina e às responsabilidades de um adulto, ela não tinha paciência alguma com seus colegas mais infantilizados: “Ô, filha da puta! Não tem respeito”? Ela sempre disparava quando uma bolinha de papel acertava sua cabeça.
Um dia, numa aula, comentando os inícios da formação do Brasil, falei da chegada dos portugueses e das transformações na vida dos povos nativos. Depois de um breve debate, ela fez uma incrível síntese sobre o assunto, que professor algum poderia fazer igual. Ela disse:“Então, quer dizer que os portugueses foram uns baita de uns pau no cú, que vieram aqui pra robá”?

Me pergunto se existiria uma explicação melhor para a história do Brasil.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

DROGAS ESCOLARES


Existe muita discussão na sociedade a respeito do que é considerado droga ou não. Fala-se em drogas lícitas e ilícitas. Alguns defendem o uso medicinal de um tipo de droga, enquanto outros são executados ou encarcerados por vender essa mesma droga. O que para alguns representa um veneno, para outros é um santo remédio. Enfim, a discussão é interminável. O ambiente escolar não está de modo algum distante desse debate.
Lembro do Rael. Ele tinha 14 anos e estava no quinto ano do fundamental. Magrelo, boné enterrado na cabeça, olhos esbugalhados. Sempre me fazia a mesma pergunta: “Sôr, posso sair”? Rael não aguentava nem cinco minutos dentro da sala de aula, Para que ele suportasse meio turno, era preciso uma dose cavalar de um remédio de tarja preta, não sei qual. Às vezes, ele vinha à escola sem tomar esse medicamento, provavelmente por descuido da mãe, imagino. Algum médico o havia diagnosticado com algum transtorno psiquiátrico, déficit de atenção, hiperatividade, sei lá, e sem essas boletas era impossível a convivência dele em sociedade. Bom, ao menos nessa sociedade em que vivemos.
Eu não parava de pensar numa coisa quando estava com ele na sala de aula: Que porcaria que não é o sistema escolar, não? Um garoto de 14 anos precisa estar chapado para suportá-lo. Infelizmente, não só os alunos vivem essa realidade. Também muitos docentes lançam mão do uso desses medicamentos para enfrentarem a pesada rotina. São muitos os estudos que abordam esse tema.
Bom, voltando ao Rael, no ano em que trabalhei com ele (o único, graças a Deus), ele era o assunto principal das reuniões do conselho de classe dos professores. Uma dessas reuniões me ficou registrada na memória, pela pouca perspicácia de alguns colegas. Após mais um relato de caso de indisciplina de Rael na hora do recreio, e depois de todos os professores terem comentado diversos episódios do tipo em suas aulas, todos envolvendo ele, alguém levanta o seguinte questionamento: “Será que ele não usa algum tipo de droga”?
"Claro, a mesma que tu"! Foi o que me deu vontade de responder. Mas fiquei bem quieto. Qual seria uma resposta adequada para essa pergunta?