quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

LEONANDRO

O silêncio. Por que ele perturba tanto? As pessoas quase sempre se sentem constrangidas, quando reunidas em um ambiente silencioso. Elas observam-se umas as outras, olham ao redor, tamborilam com os dedos… enfim, não ficam confortáveis. Para aquelas que gostam de uma boa conversa, essa situação pode ser uma tortura.
Raramente encontramos um ambiente assim em uma sala de aula. E nessas raras vezes que isso acontece, o silêncio dura, talvez, um minuto. Sempre há alguém para dizer a famosa frase: “que silêeeencio”…
Na turma do Leonandro, ele quebrava o silêncio de um jeito diferente. Durante as aulas, enquanto eu expunha o trabalho do dia, ou enquanto a turma realizava uma atividade, num raro momento de concentração, sempre escutava a voz dele: “Beterraba”! Ou, às vezes, era: “Repolho”! A turma toda caía na gargalhada e era uma vez a aula que estava tentando dar, tudo ia pro ralo. Ele falava essas coisas sem sentido... nomes de legumes... pfff.... Não sei se ele tinha alguma horta em casa, ou se a família vendia verduras pelas ruas, como aqueles caminhões que passam pelos bairros periféricos, gritando os nomes dos produtos, sei lá.
Mas essa não era a única coisa estranha em relação a ele. Leonandro era um personagem bem curioso. Gordinho, tinha a cabeça enterrada nos ombros, lembrando o tio Fester da Família Adams, e era coxo de uma perna. Como se já não bastasse essas raras características esquisitas, ele tinha algum tipo de problema urinário. Em outras palavras, fedia a mijo.
Você pode imaginar que um cara assim, sofreria muito na escola, com o bullying dos colegas, debochando dele o tempo todo, sendo excluido da turma e tal. Não, nada disso. Ao contrário, era ele o que praticava o bullying com os demais. Qualquer um era alvo dele, os negros, os orelhudos, os magrelos, os altos, os baixinhos, os sardentos, etc. Eu também não escapava das brincadeirinhas dele. Como tinha barba e cabelo comprido eu era o Jesus Cristo, o Raul Seixas, etc.
Sempre pensava no porque disso. Por que os outros aceitavam os deboches dele? Um guri esquisito daqueles. Será que ele era afilhado do dono da boca e todos o temiam? Mas não, não era esse o caso. Por que, então?
Minha hipótese é de que aquilo era um tipo de ataque preventivo. Antes que zombassem dele, ele já disparava a sua metralhadora de babaquice contra todo mundo. Também podia ser um problema de autoaceitação, ou seja, aquilo que ele odeia em si próprio, apontava nos demais. Seja o que for, era muito chato.
Mas, pensando por outro lado, quem sabe o preconceituoso não era eu? Que enxergava motivos para debochar do Leonandro quando ninguém mais via. Por que fariam isso? Quem sabe, os problemas estavam em mim, não nele. Mas, assim como podemos dizer que ele não possuía nenhuma característica “naturalmente” bullyinível,   nem a perna renga, nem o fedor de mijo, nem nada  –, será que alguém possui?

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

PRESIDENTE ANTHUR


Nessa série de relatos não poderia faltar o Anthur. O aluno mais participativo em aula que já conheci. Diagnosticado com síndrome de Asp... Aspr... um tipo de autismo. Ele tinha fixação por nomes e fatos históricos, países, capitais, etc., o que fazia da minha aula, a preferida por ele. Se fascinava pela história de qualquer nome famoso. Admirava de Getúlio Vargas a Simón Bolívar, de Stalin a John F. Kennedy.

 Adorava cantar o hino nacional brasileiro, bem como o riograndense. Bastava pedir a ele que, sem cerimônia alguma, se levantava em posição de sentido e começava a cantá-los em altos brados. Claro que os colegas faziam isso quando queriam zombar dele. E, normalmente, queriam isso o tempo todo. Era um pouco complicado fazer um debate em aula com ele. Quando eu fazia uma pergunta para a classe, ele logo queria responder. O que poderia ser bom, mas em vez de responder a pergunta, ele iniciava um discurso de político (não um discurso político, um discurso de polítco): "No meu governo...", " a corrupção do PT...", "quando eu fundar os Estados Unidos da América Latina...". Lógico todos os colegas odiavam isso e não queriam que ele falasse. O azar é que ele era o único aluno que queria participar da aula, ainda que fosse para fazer a sua campanha presidencial.
Pobre Anthur, a fascinação que ele nutria para com assuntos históricos e geográficos, era a mesma que ele tinha para com as meninas. Pena que ele era o patinho feio da escola. Sempre deprimido. Trocava duas palavras com alguma garota e já estava apaixonado. Infelizmente, nunca era correspondido. 
Ele acabou se transferindo para outra escola, naquela não havia mesmo ambiente para ele. Recentemente, pelo facebook, fiquei sabendo que ele concorreu a presidência do grêmio estudantil da sua atual escola. Pelo que entendi, não ganhou. Não dessa vez... 

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

A HISTÓRIA DO BRASIL EM UMA FRASE



Até agora não havia entrado nenhum relato no blog envolvendo uma menina como protagonista, não é mesmo? Mas, agora, isso vai mudar. Senhoras e senhoras, representando as “duronas”, a espetacular Stelaine! Nas primeiras aulas, até me acostumar com o jeito rude dela, eu estranhava um pouco. Depois ela se transformou na minha principal aliada na sala de aula, pena que ela ficou pouco tempo, teve que deixar a classe para dar à luz sua filhinha. Mas esse curto período que a conheci já serviu pra me marcar.
Stelaine cresceu sem os pais, parece que a mãe não tinha condições nenhuma de criá-la, nem financeira, nem psicológica, nem nada. Sobre o pai, ninguém tinha qualquer informação. Ela viveu fugindo de abrigos, em casas de parentes, rodando o mundo. Até que conheceu um homem mais velho e se casou. No ano que em foi minha aluna, ela tinha 16 anos e estava no sétimo ano do fundamental, recém regressava aos bancos escolares, depois de um longo período fora. Habituada já à rotina e às responsabilidades de um adulto, ela não tinha paciência alguma com seus colegas mais infantilizados: “Ô, filha da puta! Não tem respeito”? Ela sempre disparava quando uma bolinha de papel acertava sua cabeça.
Um dia, numa aula, comentando os inícios da formação do Brasil, falei da chegada dos portugueses e das transformações na vida dos povos nativos. Depois de um breve debate, ela fez uma incrível síntese sobre o assunto, que professor algum poderia fazer igual. Ela disse:“Então, quer dizer que os portugueses foram uns baita de uns pau no cú, que vieram aqui pra robá”?

Me pergunto se existiria uma explicação melhor para a história do Brasil.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

DROGAS ESCOLARES


Existe muita discussão na sociedade a respeito do que é considerado droga ou não. Fala-se em drogas lícitas e ilícitas. Alguns defendem o uso medicinal de um tipo de droga, enquanto outros são executados ou encarcerados por vender essa mesma droga. O que para alguns representa um veneno, para outros é um santo remédio. Enfim, a discussão é interminável. O ambiente escolar não está de modo algum distante desse debate.
Lembro do Rael. Ele tinha 14 anos e estava no quinto ano do fundamental. Magrelo, boné enterrado na cabeça, olhos esbugalhados. Sempre me fazia a mesma pergunta: “Sôr, posso sair”? Rael não aguentava nem cinco minutos dentro da sala de aula, Para que ele suportasse meio turno, era preciso uma dose cavalar de um remédio de tarja preta, não sei qual. Às vezes, ele vinha à escola sem tomar esse medicamento, provavelmente por descuido da mãe, imagino. Algum médico o havia diagnosticado com algum transtorno psiquiátrico, déficit de atenção, hiperatividade, sei lá, e sem essas boletas era impossível a convivência dele em sociedade. Bom, ao menos nessa sociedade em que vivemos.
Eu não parava de pensar numa coisa quando estava com ele na sala de aula: Que porcaria que não é o sistema escolar, não? Um garoto de 14 anos precisa estar chapado para suportá-lo. Infelizmente, não só os alunos vivem essa realidade. Também muitos docentes lançam mão do uso desses medicamentos para enfrentarem a pesada rotina. São muitos os estudos que abordam esse tema.
Bom, voltando ao Rael, no ano em que trabalhei com ele (o único, graças a Deus), ele era o assunto principal das reuniões do conselho de classe dos professores. Uma dessas reuniões me ficou registrada na memória, pela pouca perspicácia de alguns colegas. Após mais um relato de caso de indisciplina de Rael na hora do recreio, e depois de todos os professores terem comentado diversos episódios do tipo em suas aulas, todos envolvendo ele, alguém levanta o seguinte questionamento: “Será que ele não usa algum tipo de droga”?
"Claro, a mesma que tu"! Foi o que me deu vontade de responder. Mas fiquei bem quieto. Qual seria uma resposta adequada para essa pergunta?