– Olha ali, são
os “contra”! – Disse o garoto Ismael, apoiado na janela do
corredor do pavilhão de aulas, que dava para o fundo da escola.
Há alguns meses
a vila andava sobressaltada com uma guerra de facções pelo controle
dos pontos de tráfico. Eram frequentes as incursões de traficantes
de outras partes da cidade para matar desafetos, intimidar ou,
simplesmente demonstrar força, naquela vila. Naquele dia, a escola
havia recebido um aviso dos traficantes locais, trazido por
moradores, de que as aulas deveriam ser suspensas ao meio-dia, devido
a uma possível invasão na vila, o que poderia levar a um tiroteio
entre facções. A direção da escola, preferiu esperar um pouco
mais para tomar uma decisão. Afinal, suspender um dia de aula assim,
através de um recado boca a boca... não parece ser um procedimento
correto.
Antes do aluno
Ismael lançar seu alerta para o que estava acontecendo do outro lado
da janela, havíamos escutado um som, como de um tiro, porém, nesse
primeiro momento, ninguém deu muita atenção, pois, o tempo
inteiro garotos detonam bombinhas e rojões próximo a escola, de
todas as maneiras possíveis, de modo que ninguém mais se assustava
com qualquer coisa. Mas, quando Ismael falou, todos fomos a janela
ver o que era, eu e mais os outros quatro alunos da oficina de meio
ambiente. Um carro branco estava parado no meio da rua com a porta
aberta, um homem com um pé do lado de fora, sem descer totalmente do
carro, apontava um revólver para o céu. Nesse momento, ele deu mais
um tiro. Parece que o recado boca a boca era sério.
Esse carro branco
arrancou e foi para frente da escola, parou de novo e outro tiro foi
disparado para o alto. Quem estava no pátio, fazendo aula de
educação física, correu desesperadamente para se abrigar, se
esconder, fugir ou sabe-se lá o quê. Eu permaneci no pavilhão de
cima com os alunos, dava pra acompanhar todo o movimento e parecia um
lugar seguro, era melhor ficar por lá e esperar a orientação do
que fazer.
Naquela altura, o
cheiro de pólvora havia tomado a escola. Pude notar a adrenalina que
tomou conta dos garotos. Não estavam assustados. Contavam causos de
seus tios, amigos ou irmãos que fazem parte de facções ou que
estão presos, falavam sobre as armas que já viram na vila, que já
pegaram na mão, etc. Aquilo tudo era como parte do dia a dia. Até
as músicas que eles ouvem contam isso.
O fato é que,
até então, não sabíamos nada de certo, quem eram aquelas pessoas
naquele carro branco, porque fizeram aquilo, não se sabia nada. Os
meninos deduziram que eram os “contra”, ou seja, traficantes
rivais, de fora da vila
De repente, um
carro cinza passa pela rua lateral à escola, em alta velocidade, ia
para a mesma direção que o carro branco anterior havia ido.
– Olha lá,
aqueles são os “guri”! Os “guri” vão pegá eles! Bá, os
“guri” têm até metralhadora!
Os “guri”...
é a maneira carinhosa de se referir aos membros do tráfico local.
Afinal de contas, fazem parte dele, os seus vizinhos, conhecidos, às
vezes amigos e até parentes.
Os garotos já
haviam construído o roteiro de um "filme", que era mais ou menos
assim: Os malignos “contra” chegaram pra intimidar a vila,
atirando para o alto perto da escola. De repente, os destemidos
“guri” surgem para acabar com a petulância desses vilões e vão
ao encontro deles para defender a sua comunidade.
Depois, se soube
que eram membros da facção local mesmo, que fizeram aquilo, de
atirar para o alto, para forçar o fechamento da escola. Você vê,
na verdade, eles estavam preocupados com a segurança dos alunos e
professores, para que não ficassem na linha de tiro, quando a guerra
começasse. Porém, quando estávamos lá em cima no último andar do
pavilhão de aulas, vimos um outro filme, bem mais empolgante.
Na verdade, foi
divertido. Ficamos sentados nas classes, olhando pela janela. Os
meninos estavam na expectativa dos próximos acontecimentos. Qualquer
carro que passava era apontado.
– olha lá,
outro carro cinza! – ali, ali, um carro vermelho! – Lá, um
carro verde! – uma bicicleta! – uma carroça...
Bom, no final das contas, naquele dia saímos mais cedo. Eu nunca
tinha passado por uma situação daquelas e pensei, quantas vezes
isso acontece nas vilas e favelas por esse Brasil? O que podemos
esperar desses meninos e meninas, pra quem a violência é uma
cultura? Como pode a escola agir nesse contexto? Os defensores do
projeto Escola Sem Partido têm alguma proposta quanto a isso?