quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

PÓLVORA ESCOLAR

– Olha ali, são os “contra”! – Disse o garoto Ismael, apoiado na janela do corredor do pavilhão de aulas, que dava para o fundo da escola.
Há alguns meses a vila andava sobressaltada com uma guerra de facções pelo controle dos pontos de tráfico. Eram frequentes as incursões de traficantes de outras partes da cidade para matar desafetos, intimidar ou, simplesmente demonstrar força, naquela vila. Naquele dia, a escola havia recebido um aviso dos traficantes locais, trazido por moradores, de que as aulas deveriam ser suspensas ao meio-dia, devido a uma possível invasão na vila, o que poderia levar a um tiroteio entre facções. A direção da escola, preferiu esperar um pouco mais para tomar uma decisão. Afinal, suspender um dia de aula assim, através de um recado boca a boca... não parece ser um procedimento correto.
Antes do aluno Ismael lançar seu alerta para o que estava acontecendo do outro lado da janela, havíamos escutado um som, como de um tiro, porém, nesse primeiro momento, ninguém deu muita atenção, pois, o tempo inteiro garotos detonam bombinhas e rojões próximo a escola, de todas as maneiras possíveis, de modo que ninguém mais se assustava com qualquer coisa. Mas, quando Ismael falou, todos fomos a janela ver o que era, eu e mais os outros quatro alunos da oficina de meio ambiente. Um carro branco estava parado no meio da rua com a porta aberta, um homem com um pé do lado de fora, sem descer totalmente do carro, apontava um revólver para o céu. Nesse momento, ele deu mais um tiro. Parece que o recado boca a boca era sério.
Esse carro branco arrancou e foi para frente da escola, parou de novo e outro tiro foi disparado para o alto. Quem estava no pátio, fazendo aula de educação física, correu desesperadamente para se abrigar, se esconder, fugir ou sabe-se lá o quê. Eu permaneci no pavilhão de cima com os alunos, dava pra acompanhar todo o movimento e parecia um lugar seguro, era melhor ficar por lá e esperar a orientação do que fazer.
Naquela altura, o cheiro de pólvora havia tomado a escola. Pude notar a adrenalina que tomou conta dos garotos. Não estavam assustados. Contavam causos de seus tios, amigos ou irmãos que fazem parte de facções ou que estão presos, falavam sobre as armas que já viram na vila, que já pegaram na mão, etc. Aquilo tudo era como parte do dia a dia. Até as músicas que eles ouvem contam isso.
O fato é que, até então, não sabíamos nada de certo, quem eram aquelas pessoas naquele carro branco, porque fizeram aquilo, não se sabia nada. Os meninos deduziram que eram os “contra”, ou seja, traficantes rivais, de fora da vila
De repente, um carro cinza passa pela rua lateral à escola, em alta velocidade, ia para a mesma direção que o carro branco anterior havia ido.
– Olha lá, aqueles são os “guri”! Os “guri” vão pegá eles! Bá, os “guri” têm até metralhadora!
Os “guri”... é a maneira carinhosa de se referir aos membros do tráfico local. Afinal de contas, fazem parte dele, os seus vizinhos, conhecidos, às vezes amigos e até parentes.
Os garotos já haviam construído o roteiro de um "filme", que era mais ou menos assim: Os malignos “contra” chegaram pra intimidar a vila, atirando para o alto perto da escola. De repente, os destemidos “guri” surgem para acabar com a petulância desses vilões e vão ao encontro deles para defender a sua comunidade.
Depois, se soube que eram membros da facção local mesmo, que fizeram aquilo, de atirar para o alto, para forçar o fechamento da escola. Você vê, na verdade, eles estavam preocupados com a segurança dos alunos e professores, para que não ficassem na linha de tiro, quando a guerra começasse. Porém, quando estávamos lá em cima no último andar do pavilhão de aulas, vimos um outro filme, bem mais empolgante.
Na verdade, foi divertido. Ficamos sentados nas classes, olhando pela janela. Os meninos estavam na expectativa dos próximos acontecimentos. Qualquer carro que passava era apontado.
– olha lá, outro carro cinza! – ali, ali, um carro vermelho! – Lá, um carro verde! – uma bicicleta! – uma carroça...
Bom, no final das contas, naquele dia saímos mais cedo. Eu nunca tinha passado por uma situação daquelas e pensei, quantas vezes isso acontece nas vilas e favelas por esse Brasil? O que podemos esperar desses meninos e meninas, pra quem a violência é uma cultura? Como pode a escola agir nesse contexto? Os defensores do projeto Escola Sem Partido têm alguma proposta quanto a isso?



quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

SÔR, VAI CONTINUAR MEU AMIGO?

O escritor Umberto Eco, no final dos seus dias, disse que a internet deu voz aos imbecis. Acredito que isso seja verdade. Além de imbecilidades, também temos as notícias falsas. Tudo espalhado como a maior das verdades. Os imbecis produzem e outros, compartilham. Asneiras como o feminismo ser culpado pelo aumento da quantidade de gays e lésbicas no mundo, idiotices como os direitos humanos defenderem bandidos, estupidezes como a política de cotas tirar os direitos dos que são brancos ou, o mais ridículo, postagens de apoio às políticas de Donald Trump, feitas por brasileiros, que nunca conseguirão entrar nos Estados Unidos e desfrutar dos benefícios deste belo país.
Você poderia pensar: “Deixa esses imbecis pra lá! Manda eles à merda e exclui do seu facebook”! Mas, quando o “imbecil” é um aluno, ou ex-aluno seu? Que você acompanha ou acompanhou em aula, viu seus progressos, o ajudou pensar, a chegar a suas próprias conclusões. E, de repente, a conclusão que ele chegou é de que ele prefere viver sob a censura de uma ditadura do que ter “sua família morta por um vagabundo”.
A ditadura de 1964, acabou com os “vagabundos”? Ah, os vagabundos, esses seres sempre citados quando se quer defender um regime de exceção, o que seria do discurso de ódio se não fossem eles? Bolsonaro, Luís Carlos Prates, Oswaldo de Carvalho, Rogério Mendelski, esses caras devem tanto aos vagabundos!
Normalmente, caras como eles atacam regimes como o cubano ou o da Coréia do Norte. Haveria que se perguntar se nesses países, com suas políticas autoritárias, a “vagabundagem” tem vez. E, dependendo da resposta, haveria que se perguntar se esses caras estão interessados, então, em liberdade e democracia ou em punir os “vagabundos”.
Bom, o fato é que com frequência me envolvo em discussões de internet com meus alunos e ex-alunos. Todos, muito cedo, já se consideram de direita e anticomunistas, seja lá o que isso signifique. Numa dessas, terminando uma conversa, onde discutimos muito, o menino me escreve: “Sôr, vamos continuar amigos, né”? Como posso eu tratá-lo? Como um imbecil? Como um fascista? Claro, que eu disse que continuaríamos amigos. E o que mais eu diria? Sei que a educação é um caminho sem fim, basta manter a cabeça aberta e você sempre aprenderá. Segundo Paulo Freire, você só para de aprender quando achar que já sabe tudo. Eu acredito nisso.

Sempre fazer perguntas, e mais perguntas, quando encontrar um discurso de ódio pela frente. Escolhi fazer meu enfrentamento dessa maneira. Principalmente quando a fonte de reprodução desse discurso, diante de mim, for um aluno.  

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

QUANTO MAIS PIOR



O Maurílio era dureza. Antes de ser meu aluno, eu já via como ele era pelo pátio e corredores da escola. Insubordinado, insubmisso, insubjugável. Nossa, pra um professor libertário, estas parecem características ótimas. O problema é que ele não quer saber de qualquer coisa que você tenha a dizer. E você e ele estão na escola. Nesta escola! Pública, estatal, capitalista, ocidental, fordista, seriada ou ciclada, não importa. O que sabemos sobre “escola”, há gerações, é que um deve falar e o outro deve ouvir. O primeiro é o professor e o segundo é o aluno. Todos sabemos disso. Inclusive o Maurílio. Que já tem, desde a mais tenra idade, o estigma de “aluno problema”, já se subjetivou dessa forma e assim se identifica, assim se diferencia dos demais. Não importa se você é um professor “aberto”, progressista ou revolucionário, você é o cara que está lá para subjugá-lo e ele é o cara que está lá para resistir, que não se dobra. Que tem uma reputação a zelar, a de não obedecer a ninguém, muito menos a um professor.
O seu dever, como professor, é pedir que ele lhe dê alguma atenção e realize a tarefa proposta. Se ele vai te dar ouvidos, é outra história. Você pede para ele desligar o celular e é como se você falasse com a parede. Ele importuna uma colega (as meninas são sempre o alvo principal, né?) e ela exige que você exerça sua autoridade de professor e faça com que ele pare. Mas você não tem essa autoridade. Ao menos a autoridade de fazer um aluno “parar”.
“Que que é, ô caganêra”! “Eu vô te matá, tu vai vê”!
Essa era a resposta que eu ouvia ao tentar chamar a atenção do Maurílio.
Bom, mas você faz o quê? Segue adiante, segue tentando. Uma vez descobri que ele, junto com o Wendell (falarei mais desse aluno, mas já falei um pouco, clique aqui), se interessavam muito por questões de astronomia, planetas, extraterrestres, etc. Preparei atividades apenas para eles, separadamente do resto da turma. Mas, claro, como você precisa atender todo mundo, acaba não dando a devida atenção para eles. E então, essa paixão pelas estrelas não durou muito, duas aulas, digamos. Porque é justamente esse o problema deles: falta de alguém para sentar ao lado, conversar, incentivar, trabalhar junto. E os governos com seu pensamento econômico, com suas políticas de corte de gastos e enxugamento da máquina pública, faz o contrário. Isola os alunos. Os professores têm turmas cada vez mais cheias e aquele atendimento individualizado, que seria o certo para os dias de hoje, fica mais difícil de ser feito.

Quem quer resolver o problema?

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

AS "CORES DO REGGAE"


Você já reparou naquelas pulseirinhas coloridas de verde, amarelo e vermelho? Nas escolas é muito comum ver os meninos e meninas com elas. É como uma identificação coletiva. Muitos carregam as pulseirinhas de tecido ou de outro material, também usam colares, brincos, etc. E quando perguntados sobre o significado das cores, logo respondem: "É as cores do reggae, sôr"! Também respondem, às vezes: "Ah, é a bandeira da Jamaica"!

E como se identificam com esse mundo... usam camisetas de Bob Marley ou com folhas de maconha estilizadas, adoram a Jamaica... às vezes, na sala de aula, percebo que alguns se aproximam do mapa-múndi que fica na parede, colocam o dedo sobre o mapa e começam a procurar... sempre querem saber onde fica a Jamaica. Nossa, como eu gostaria que esse gosto pelo país caribenho se refletisse nas músicas que tocam nos celulares deles. Imagina, flagrar um aluno escutando "I shot the sheriff", em vez de "Bota o bucetão no revólver"! Seria um sonho pra mim.
Bom, você sabe que essas cores não são "as cores do reggae", né? Você encontra essas cores em quase todas as bandeiras dos países africanos. Elas estão lá, de um jeito ou de outro. Representam o "panafricanismo", a união de todos os povos africanos. Como muitas letras de reggae falam da África, da sua história, das suas lutas, da sua exploração, etc. seria natural que os cantores e músicos usassem essa cores. Agora, imagina quando essa gurizada se der conta de que esses símbolos, que ela gosta tanto, carregam toda essa carga histórica. Seria outro sonho pra mim. 
Tá aí! Achei outro significado para o verde, amarelo e vermelho. As cores do sonho! Do meu sonho!