A comunidade em que a minha antiga escola se encontrava, apresentava um grave problema de moradia. Todos sabem o que é isso. Pessoas sem condições financeiras constroem suas casas em áreas "livres" e vão vivendo, até que as expulsam, então elas procuram outro local para construir suas casas, se é que pode se chamar assim as precárias habitações que são construídas. Pois, outro dia, durante uma conversa na sala dos professores (e professoras, aliás, elas são sempre a maioria), comentávamos sobre a ausência de um aluno, o Rui, fazia muito tempo que ele não aparecia. Então, uma colega, que era a professora dele na oficina de robótica, da qual ele gostava muito, comentou ter pedido para um aluno que fosse, se pudesse, até a casa do Rui, para ver o que estava acontecendo com ele, porque faltava tanto.
O menino fez o que ela pediu, mas quando voltou com a resposta, foi trágico e cômico. Ele disse: "Professora, fui até a casa do Rui... mas a casa dele não tava mais lá"...
quarta-feira, 10 de maio de 2017
quinta-feira, 27 de abril de 2017
NOTA 10! E DAÍ?
O fim de ano vem chegando e, na escola, sempre vem aquele
problema. Já não há mais o que fazer, muitos alunos já têm uma ideia segura dos
seus resultados, uns sabem que passaram, outros sabem que não, as principais
avaliações já foram feitas... não há muita motivação para ira a escola, se vai
apenas para “cumprir tabela”, realmente.
Num desses dias, como havia poucos alunos, numa turma de
sétimo ano em que eu estava, decidi aproveitar o momento para fazer algo
diferente, então propus uma conversa. Falaríamos sobre o que acharam do ano, o
que pensam fazer no futuro, esse tipo de coisa... uns toparam a ideia,
participavam bem, outros, só perguntavam se podiam ir para casa. E, assim,
levamos até o final.
Lá pelas tantas, questionei sobre o que achavam das minhas
aulas, se aprenderam algo importante. Um deles, disse que achava Geografia
importante para saber onde ficam os lugares, os países, etc. Então, perguntei a
ele, de que servia saber onde ficam os países?
– Ah, sôr, se a gente
quiser ir viajar, ir viver em outro país...
Nesse momento, pensei sobre quão inútil era eu e aquele meu
trabalho... pois, a conclusão que o menino havia chegado era de que ele só
aproveitaria um ano inteiro de aula de Geografia, se ele fosse viajar. Quantos alunos meus viajarão para outro país? Que aula mas inútil... Anotei
aquele problema para tentar me reinventar no futuro, precisava fazer aulas mais
úteis, meu papel não é o de um agente de turismo. Porém, aquele questionamento
havia mexido com outra aluna. E então, quando ela falou, o meu sentimento de
que meu trabalho não servia para nada, apenas se confirmou. As palavras dela
foram sinceras, e duras, me senti rebaixado ao nível de uma formiga.
A menina falou, de uma maneira natural, sobre como o que ela
aprendeu até aquele momento na escola, não havia lhe sido útil de forma alguma.
Segundo ela, em nenhuma entrevista de emprego perguntam sobre nada do que se
ensina numa sala de aula. Entrevistador nenhum quer saber dessas coisas que se
aprende em Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e, principalmente, em
Geografia. Procurei questioná-la, mas não tentei defender o contrário. Pensei
que, se até aquela altura do campeonato, a escola ainda não havia convencido
aquela menina da sua importância, então não tinha muito o que eu fazer naquele
momento.
Mas, como que para colocar aquela cereja no bolo da discussão,
outra aluna comenta, com muita tranquilidade, sobre como seu irmão mais velho
abandonou a escola para traficar drogas. E, depois que já havia adquirido
algumas propriedades, imóveis, etc. decidiu que, então, já era hora de
largar essa atividade, um tanto perigosa, e viver dos aluguéis de suas casas.
Alguns colegas se impressionaram, outros criticaram... Mas, no fim, o irmão
dela era apenas um homem de negócios, não? Talvez as aulas de Matemática tenham o ajudado, quem sabe, mas Geografia, acho que não.
O que aprendemos com tudo isso? Com essas opiniões dos alunos? Acho que muito, mas só se
estivermos dispostos a rever nossos papeis.
quarta-feira, 19 de abril de 2017
MISTÉRIOS DA SALA DE AULA
Existem algumas coisas engraçadas sobre os alunos, essas
coisas possuem uma lógica muito particular, apenas entendida por eles. Já fui
um aluno, já estive sentado no lugar em que eles estão agora. Mas confesso, não
sei se pelo fato de ser há muito tempo, não entender mais muitas dessas coisas,
se é que, algum dia, entendi.
Por exemplo, a questão de jogar bolinha de papel no lixo. O
guri passa a aula inteira em pé, andando pela sala, incomoda um, puxa o cabelo
daquela, toma o celular de outro. Faz uma verdadeira excursão por todos os
pontos da sala de aula. Mas, se for para jogar papel no lixo, ele não irá
caminhar até lixeira, ele sempre se senta na classe dele, que é, geralmente,
bem longe, e tenta acertar a lata de lixo. De onde vem essa preguiça repentina?
Gostaria de saber.
Outro momento muito curioso é quando você tenta expor um
assunto verbalmente, ou seja, uma aula expositiva. Você, então, quer explicar
algo antes de passar a tarefa, para ajuda-los a realiza-la, e isso,
infelizmente, se torna algo impossível. Os alunos conversam entre si, em voz
alta, ouvem música no celular, se levantam. Você acaba brigando com todos, dá
um sermão sobre escutar o próximo e etc, etc. E isso não adianta porra nenhuma.
Então, você se cansa, já se desgastou demais tentando falar e se vira para o
quadro para passar a tarefa, sem explicação mesmo, azar. Nesse momento, todos
se calam e começam a copiar. De repente, a sala fica em silêncio. E me
pergunto, por que não dá pra acontecer o contrário, deixarem para conversar
depois da explicação? Outro mistério insolúvel.
Por fim, a última lógica difícil de entender para mim é a daquele
aluno que faz absolutamente tudo o que ele quer na sala de aula, ouve música,
joga videogame, anda pela sala, joga pião, bate figurinhas, etc. não se importa
um ovo com você, tá se lixando se você está na sala ou não. De repente, ele
chega perto de você e diz: “Sôr, dá pra ir no banheiro”? E me pergunto, por que
minha autoridade só serve para deixar ir ao banheiro? Não tenho poder sobre
mais nada na aula, exceto o salvo conduto até o banheiro.
Quem sabe alguém possa me auxiliar a desvendar esses
mistérios, até agora não consegui.
quarta-feira, 5 de abril de 2017
TÊNIS NOVOS
A noite tinha
sido agitada na comunidade, os alunos relataram ouvir o som de tiros,
foram muitos. Me lembro da fala de uma aluna quando chegou na sala de
aula: “É foda, véio! Tu tá saindo de casa pra ir pro colégio, e
tem um corpo morto atirado bem na tua esquina”! Eu nem imagino o
que deve ser isso. Não passei por nada parecido quando cursava o
antigo 1° grau. O máximo que vi foi alguma galinha morta na esquina
da escola, recheada com pipoca. Nunca uma pessoa.
Os alunos lidam
de formas diferentes com essa situação, assim como essa aluna
pareceu impressionada e indignada com esse fato, outros já se
importam bem menos. É o caso do Daniel, onze anos de idade, um metro
e vinte de altura, mas se comportava como um adulto. É estranho de
ver, difícil de explicar, tu tens que ver para entender, quaisquer
palavras que eu use aqui não servirão para descrevê-lo. Mas, não
tem outro jeito, tenho que tentar.
O olhar dele já
não era o de uma criança há muito tempo, sabe, tinha aquela
“maldade”, aquela “esperteza que só tem quem tá cansado de
apanhar”, como diz a música dos Paralamas. E a maneira de falar,
então... sempre ameaçador, agressivo, cheio das gírias... se via
que ele não convivia com crianças da sua idade... A pele sempre
encardida, as roupas sujas, gastas, sempre de um número maior que o
dele. Esse era o Daniel, vivia como um cachorro abandonado...
Ele entrou nessa
história porque no dia em que a comunidade acordou com um corpo
jogado em uma esquina, o Daniel chegou na escola com um par de tênis
novos, muito maiores que os pés dele. Quando uma professora
estranhou aquela situação e perguntou de onde ele havia tirado
aqueles tênis esquisitos, ele respondeu tranquilamente que tinha
sido daquele cadáver.
E assim segue a educação nas comunidades periféricas do Brasil,
entre cadernos e cadáveres, canetas e armas... antes de terminar
aquele ano, o Daniel tentou sair empurrando minha moto pelo portão
da escola, os funcionários que viram o pararam. Até onde ele iria?
Não sei... admito que fiquei um pouquinho feliz quando aquele ano
acabou.
quarta-feira, 29 de março de 2017
NEVER GIVE UP!
Já
falei sobre o Wendel em outro post (clique aqui), mas agora quero me
deter um pouco mais nele, nunca vi outro igual. Sofria de um grave
problema de saúde que atrofiou seu crescimento, de modo que ele já
tinha 16 anos quando o conheci, mas sua aparência era de 11 anos de
idade. Baixinho, corpo franzino, parecia um boneco de marionete. Tudo
nele inspirava fragilidade. Apesar disso os demais o tratavam com
reverência, ainda não estou bem certo do motivo disso.
Se
notava nos antebraços e canelas algumas tatuagens, daquelas verdes,
bem toscas. Tinha as clássicas que todos os meninos de vila fazem,
um diamante, o nome da mãe e um palhaço. Havia outras ainda, mas
não lembro. Esses são alguns dos elementos que diferenciam os
garotos. Uns fazem essas tatuagens por “zoeira”, já outros
dominam esses códigos, e isso os aproxima ainda mais. Wendel,
pequenino, se destacava em meio aos outros grandões. Eu notava, que
ele dominava uma conversação entre eles, os demais o escutavam,
riam de suas piadas sujas... o respeitavam.
Na
sala de aula era um problema. Ele também tinha uma dificuldade tremenda
para ler e escrever. Era tão difícil que ele nem tentava mais, o
caderno permanecia na mochila, o tempo todo da aula. Mas o celular,
carregado de músicas de funk e imagens de cadáveres e execuções,
estava sempre à mão. Nunca soube o que fazer para que o conteúdo
de geografia o interessasse, mas uma vez ele me deu uma luz.
Durante
uma aula, ele e o Maurilio (já falei dele, clique aqui) conversavam
e riam no fundo da sala. Decidi pedir para que o Wendel contasse
alguma história engraçada para a turma, todos queriam rir também.
Então, ele resolveu criar alguma coisa de improviso:
–
Sabe professor... uma vez, o prefeito dos Estados Unidos me chamou
para uma missão espacial... (eu já comecei a rir) Só que eu não
fui, porque não tinha roupa de astronauta do meu tamanho!
Todos
riram, e ele contou outras histórias, entre elas a que o pai dele
era veterano de guerra, defendera Marte na “Star Wars”. Eram
coisas sem sentido, que faziam todos rir por sua maneira de falar.
Então,
depois desse dia, achei que tinha captado a mensagem. “Vou falar de
astronomia com o Wendel”. Trouxe um vídeo sobre colonização em
Marte. Ele e o Maurilio gostaram, mas o resto da turma, não muito.
Então tentei trazer atividades, livros, folhinhas, etc. para
trabalhar só com os dois. Mas era difícil, eles não eram
disciplinados para trabalharem sozinhos, quando deixava eles, para
atender outros alunos, logo se distraiam com outras coisas. Era bem
difícil.
No
fim do ano, conheci a mãe do Wendel, e eu julgava que ele nem
tivesse uma. Ela recebeu a avaliação dele, havia sido aprovado em
condições especiais, e ouviu o que os professores tinham a falar
sobre ele. Doeu bastante ver a desesperança no rosto dela, que se
justificava falando que trabalhava o dia todo e não conseguia educar
nem o Wendel, nem os irmãos dele. É muito ruim não poder dizer
alguma coisa reconfortante para uma pessoa desolada e eu, de fato,
não tinha nada de bom pra falar sobre o Wendel, fora que ele contava
histórias engraçadas.
No
fim, depois de tanto pensar em algo positivo para dizer, vi que ela
usava uma blusinha com uma frase em inglês: “Never give up!” Lhe
disse o que significava, ela abaixou o rosto e começou a rolar
lágrimas de seus olhos.
Hoje
eu não sei como está essa família. Espero que nunca desistam de
lutar.
quarta-feira, 22 de março de 2017
A GREVE É UMA COISA PESSOAL DE CADA UM
“A greve é uma
coisa pessoal de cada um”!
Já escutei essa
pérola em uma dessas salas de professores da vida... Como uma
categoria de nível intelectual tão alto e que tem tantos direitos
atacados, é capaz de produzir pensamentos desse calibre?
Esqueça os
discursos sindicais, do tipo: “Nossa categoria é unida!”,
“Fizemos uma greve vitoriosa!” Isso não passa de blefe. Há anos
não vejo uma vitória convincente de uma luta de professores, há
anos não vejo união nessa categoria. Falemos francamente, não
procuremos mentir para nós mesmos.
Isso é uma coisa
meio paradoxal, pois nas escolas sempre há algum projeto que traz
como tema a “solidariedade”, a “união”, o “protagonismo”,
a “cooperação” ... Sempre se discursa para os alunos sobre a
importância de se lutar por um mundo melhor, de se exercer a
cidadania, etc. Porém, quando os próprios professores são chamados
a praticar todas essas ideias, coisas mais importantes aparecem: o
fim de semana na praia, o jantar no restaurante, a viagem marcada, as
compras no supermercado... tantas coisas... Tudo que dissemos se
transformam em palavras vazias.
Por que isso é assim? Difícil dizer. Apesar de sermos a categoria
de nível superior mais mal paga do Brasil, ainda pensamos que somos
de uma classe à qual não pertencemos, e tampouco nos querem nela.
Colocamos nossos filhos em escolas particulares, pois não queremos
que sejam como nossos alunos. Trabalhamos, às vezes, sessenta horas
por semana, para podermos manter uma empregada arrumando nossa casa,
pagar a taxa do condomínio fechado, para pagar a parcela do carro
novo, a mensalidade TV a cabo, enfim... Temos pavor dos alunos e suas
famílias, que vivem em terrenos “invadidos”, que tem ligação
direta de luz e assinam “gatonet”. Não queremos ser como eles.
Somos de mundo diferentes. Assim, talvez, acreditem alguns.
Quem sabe, quando
admitirmos para nós mesmos que temos muito mais em comum com as
pessoas que estão nas nossas salas de aula todos os dias, do que com
as que estão no comercial do Zaffari (uma rede de supermercados de
Porto Alegre), comecemos a agir de forma diferente.
terça-feira, 14 de março de 2017
REBELDES DO SÉCULO XXI
Esqueça os
cabelos compridos e as camisetas do Che Guevara. Temos novos rebeldes
nas salas de aulas. Eles são tão críticos quanto os da geração
anterior, dão suas opiniões em sala de aula, criticam o conteúdo
do livro didático e gostam de falar sobre política. Legal, não é
mesmo? Porém, eles possuem novas referências (ou seriam velhas?).
Tenho alunos assim, são admiradores de Bolsonaro. Um deles chegou a aparecer na
escola vestindo camiseta com a estampa desse senhor. Acham, os
tolinhos, que a Dilma era comunista e que o Brasil estava prestes a
se tornar um país comunista. “O comunismo não deu certo em lugar
nenhum, sôr”! – me dizia um deles. “Nem em Cuba, nem na China,
nem na Venezuela”. Pois é, para eles, a Venezuela é um país
comunista. Festejaram quando Donald Trump venceu as eleições nos
EUA. Achavam que a Hilary Clinton era de esquerda, e a esquerda
representa o mal, na opinião deles. PT, esquerda, bandidos,
terroristas, Venezuela, Cuba, MST, PCC, Lula, Dilma, Maria do
Rosário... tudo isso faz parte de um espectro ameaçador, que é o
comunismo.
Entenderam, lá das fontes que eles consultam, que o
comunismo é um regime autoritário (não estão tão errados, se
pensarmos no bloco soviético) e que tem o objetivo de empobrecer
todo mundo. Numa conversa, um me disse, certa vez: “Esse teu
esquerdismo, sôr, só vai fazer com que os ricos fiquem pobres e os
pobres continuem pobres”. Sempre me perguntava, como garotos que
moram em um dos mais pobres bairros de Porto Alegre podem se
preocupar com a pobreza dos ricos. Me diziam: “Não pode, sôr, se
alguém é rico é porque trabalhou”!
E eu, diante
disso, não vou me posicionar? Pelo contrário, diante de pensamentos
tão bem cristalizados, eu tentava ao máximo defender o que penso. O
que devo dizer? Que com trabalho duro, você pode “vencer”?
Conhece mentira pior que essa? É certo que o bloco soviético não
me inspira confiança para defendê-lo, muito menos os anos de PT no
governo brasileiro, recheado de ataques ao povo e ao meio ambiente.
Diante desse cenário, esses jovens não canalizarão seu sentimento
de rebeldia, tão típico dessa idade, para os ícones da esquerda,
não se identificarão com eles.
Pois é, a
esquerda faz toda essa sujeira e eu, na sala de aula, tenho que
tentar limpar um pouco. Para que os rebeldes do século XXI não
tenham Bolsonaro como referência.
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