quarta-feira, 5 de abril de 2017

TÊNIS NOVOS

A noite tinha sido agitada na comunidade, os alunos relataram ouvir o som de tiros, foram muitos. Me lembro da fala de uma aluna quando chegou na sala de aula: “É foda, véio! Tu tá saindo de casa pra ir pro colégio, e tem um corpo morto atirado bem na tua esquina”! Eu nem imagino o que deve ser isso. Não passei por nada parecido quando cursava o antigo 1° grau. O máximo que vi foi alguma galinha morta na esquina da escola, recheada com pipoca. Nunca uma pessoa.
Os alunos lidam de formas diferentes com essa situação, assim como essa aluna pareceu impressionada e indignada com esse fato, outros já se importam bem menos. É o caso do Daniel, onze anos de idade, um metro e vinte de altura, mas se comportava como um adulto. É estranho de ver, difícil de explicar, tu tens que ver para entender, quaisquer palavras que eu use aqui não servirão para descrevê-lo. Mas, não tem outro jeito, tenho que tentar.
O olhar dele já não era o de uma criança há muito tempo, sabe, tinha aquela “maldade”, aquela “esperteza que só tem quem tá cansado de apanhar”, como diz a música dos Paralamas. E a maneira de falar, então... sempre ameaçador, agressivo, cheio das gírias... se via que ele não convivia com crianças da sua idade... A pele sempre encardida, as roupas sujas, gastas, sempre de um número maior que o dele. Esse era o Daniel, vivia como um cachorro abandonado...
Ele entrou nessa história porque no dia em que a comunidade acordou com um corpo jogado em uma esquina, o Daniel chegou na escola com um par de tênis novos, muito maiores que os pés dele. Quando uma professora estranhou aquela situação e perguntou de onde ele havia tirado aqueles tênis esquisitos, ele respondeu tranquilamente que tinha sido daquele cadáver.

E assim segue a educação nas comunidades periféricas do Brasil, entre cadernos e cadáveres, canetas e armas... antes de terminar aquele ano, o Daniel tentou sair empurrando minha moto pelo portão da escola, os funcionários que viram o pararam. Até onde ele iria? Não sei... admito que fiquei um pouquinho feliz quando aquele ano acabou.  

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